Édipo e seus enigmas Anchyses Jobim Lopes Círculo Brasileiro de Psicanálise
Resumo
O mito de Édipo e a tragédia do Sófocles como foco do paradigma psicanalítico. Resposta a objeções jungianas da interpretação psicanalítica. A importância do mito na Grécia clássica. Várias leituras da resposta ao enigma da esfinge. Sexualidade infantil, pulsão epistemofílica, fantasias primevas. A pergunta ‘o que é o homem’ na ótica de Kant e Heidegger. A resposta do enigma interpretada pelo nó borromeano.
Palavras-chave: Édipo, Mito, Enigma, Sexualidade infantil, Pulsão epistemofílica, Fantasias primevas, Finitude, Nó borromeano.
Tirésias: Verás num mesmo dia teu princípio e fim.
Édipo: Falaste vagamente e recorrendo a enigmas.
Tirésias: Não és tão hábil para decifrar enigmas?
Édipo: Insultas-me no que me faz mais venturoso.
Tirésias: Dessa ventura há de vir tua perdição.
Édipo: Mas salvei esta cidade, é quanto basta.
Sófocles. Édipo Rei
Introdução
A fama dos poetas trágicos gregos não deve ser subestimada por intérpretes, que consideram que eles nada mais fizeram do que colocar mitos de forma dramática. Os trágicos pouco teriam realizado além de provar como os seres humanos não passam de joguete dos deuses. Os gregos antigos não possuíam a noção contemporânea de biologia. Logo, para esses intérpretes, o que era considerado capricho divino, hoje é explicado pelo inato, pelo acaso, e não sobra resquício de liberdade.
Mas pode-se usar outro termo contemporâneo para julgar os trágicos gregos: excelentes conhecedores da natureza humana, o caráter (ethos) de cada um como verdadeiro portador (daimon) das escolhas do homem (anthropos) mesmo diante do mais cego acaso – ‘o caráter é o destino do homem’ (ethos anthropos daimon), tradução possível do fragmento 119 de Heráclito (Kahn, 2011, p. 210-211).
A crença na ciência, quando decaída em ideologia e religião, fez com que hoje o tão romântico termo “destino” de épocas anteriores fosse substituído por “geneticamente determinado”, explicável pela psicologia evolutiva e pela neurociência, e por aí vai. Para se adaptar ao inevitável: drogas e terapias comportamentais. Mas o interesse de Freud pela Antiguidade e pela mitologia mostra um dos porquês de a psicanálise estar na contramão dos modismos contemporâneos. E de todos os mitos, para Freud e para o saber por ele criado, o mito de Édipo é seu emblema, e Sófocles, cuja leitura do mito foi apropriada pela psicanálise, o poeta maior.
Retomando a importância da mitologia e da tragédia gregas no pensamento de Freud, primeiro discorreremos no tema já mais que gasto da importância do Édipo como centro de todo o paradigma psicanalítico, unindo a metapsicologia, a terapia e a filosofia da cultura freudianas. Em seguida faremos a crítica de uma interpretação feita por um autor jungiano de peso, que considera Édipo nada mais do que ser joguete dos deuses e do acaso. Uma interpretação que curiosamente encaixa com as explicações neurocientíficas no uso de nulificar a liberdade humana. Depois passaremos a uma tarefa mais longa e construtiva. A partir dos pedaços do famoso enigma da esfinge aos tebanos e da resposta desvendada por Édipo, várias leituras serão propostas, desde o psicanalítico até o filosófico. Passeando por Tebas com o pequeno Hans e Lacan, tendo por guias com um pouco dos Baedekers,1 de Kant e Heidegger.
Édipo e o enigma do foco da psicanálise
Mais de um século após seus primeiros escritos psicológicos, tornou-se bastante claro que as ideias de Freud foram muito além de sua proposta inicial de ser um método científico de investigação e um tipo novo de tratamento. O pensamento freudiano se expandiu numa enorme articulação teórico-prática. Em muito ultrapassou a proposta inicial de ser apenas uma psicologia e uma forma de terapia. Apesar de Freud (1978) várias vezes negar que sua obra era criadora de uma visão de mundo (Weltanschauung), a psicanálise acabou se constituindo num vastíssimo sistema de pensamento, possivelmente o maior e mais importante de todo o século XX.
Como é necessário a todos os grandes sistemas de pensamento, há de existir uma organicidade, uma coerência interna e uma unidade formal. Em vez do termo “sistema”, associado às grandes escolas filosóficas e aos delírios, há o termo contemporâneo “paradigma”, trabalhado pela filosofia da ciência e pela epistemologia. Constituindo um paradigma, o pensamento freudiano também se organiza a partir de um núcleo. Tal fulcro ou – como poderíamos nomear a partir dos conceitos hoje clássicos de filosofia da ciência propostos por Thomas Kuhn (1978) em seu livro A estrutura das revoluções científicas – tal foco paradigmático constitui a postulação freudiana do complexo de Édipo (Lopes, 1985).
O drama edípico, foco paradigmático do sistema psicanalítico, articula os três grupos principais em que podemos classificar as descobertas de Freud. No primeiro a chave para a compreensão da sexualidade infantil e da pulsão, fundamentos que explicam a base da psicopatologia psicanalítica. No segundo grupo estão os conceitos de recalque e de transferência. Conceitos teórico-práticos sem os quais não é possível acesso ao inconsciente dinâmico e à terapia psicanalítica. E no terceiro grupo reúnem-se as ideias sobre do processo que originou o ser humano.
Nesse grupo estão as teorias e os mitos freudianos, que permitiram as explicações sobre a evolução afetiva e intelectual do homo sapiens, da origem da crença na religião e as raízes da destrutividade humana, expostos principalmente em Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e Moisés e o monoteísmo.
Como foi assinalado pelo próprio criador da psicanálise, críticas periféricas não abalam a solidez do sistema. Ao mesmo tempo, as mais importantes tentativas de refutação partiram sempre em tomar uma parte do sistema pelo todo ou em tentar tornar a psicanálise uma psicologia ou uma terapia entre outras. Em todos os casos termina-se por reduzir o complexo de Édipo à mera particularidade de uma teoria, um cacoete dos psicanalistas. Em sentido contrário, refutar as críticas sobre a leitura freudiana do complexo de Édipo significa refutar as principais objeções à psicanálise.
Em relação à leitura freudiana do mito de Édipo, com suas variantes, bem como em relação à peça de Sófocles, podemos agrupar onde são encontradas as principais críticas ao uso que deles faz a psicanálise. As objeções mais antigas tanto podem partir de interpretações jungianas, como sintetiza Junito Brandão em obras de peso como a Mitologia grega (1987) e o Dicionário mítico-etimológico (1991, 1992), quanto podem se originar de especialistas renomados da história do pensamento grego tal Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet em Tragédia e mito na Grécia antiga (1977, 1991). Já as objeções mais recentes ou possuem por base um organicismo primário, ou são muito mais sutis e localizadas, por exemplo, no pensamento feminista (Butler, 2010). Ambas as críticas podem ser refutadas de modo análogo às dos jungianos e de alguns helenistas.
Édipo e alguns enigmas modernos: o relativismo historicista e o essencialismo da psicanálise
historiadores franceses Vernant e Vidal-Naquet retomam em seus escritos sobre o mito e a tragédia grega uma crítica à psicanálise, que lhes é anterior e feita por muitos outros helenistas. Crítica que de tempos em tempos é sempre recuperada: a problemática questão do uso por um autor do século XX, como o fez Freud, de mitos e obras que o antecederam de mais de dois milênios. Esse tipo de objeção indaga se o uso com efeito retroativo de elementos de outra cultura, de outra época com referenciais muito diferentes, não implicaria numa visão parcial e distorcida do passado; se a extrapolação de interpretações, construídas em um contexto sociocultural tão diverso, não constituiria uma violentação interpretativa que falsifica os próprios fenômenos que procura compreender.
Essa primeira crítica, referente ao uso da interpretação com efeito retroativo, pode ser rebatida em dois planos. No plano mais genérico, por ser oriunda de uma teorização que frequentemente possui como ponto de partida um pensamento sociologizante ou marxista: condições socioeconômicas diferentes produzem culturas diferentes. O curioso desse tipo de ideia é que ela própria também possui por fonte a concepção de que uma teoria contemporânea – sociologia ou marxismo – serve para interpretar universalmente todos os fenômenos, mesmo de modo retroativo. Por debaixo desse tipo de pensamento podemos ainda, no caso de estudiosos e especialistas em determinada época ou autor, perceber a tentativa de manter imaculado um idealizado objeto de estudo: uma flor mumificada em uma redoma de cristal; virgem a ser defendida do assalto bárbaro de furiosos centauros interpretativos vindos do futuro.
A objeção quanto ao uso que a psicanálise faz do mito grego deve ser rebatida também num segundo plano, mais específico, concernente ao cerne do próprio pensamento freudiano. Torna-se necessário admitir que a psicanálise sempre possuiu algo de platônico em sua fundamentação epistemológica. Platônico na acepção de consciente, ou inconscientemente, acreditar que por detrás dos fenômenos existem essências universais e eternas, pelo menos no que concerne ao ser humano. A psicanálise postula a universalidade e o paralelismo entre a origem do indivíduo (ontogênese) e da espécie (filogênese); postula a universalidade subjacente aos fundamentos da cultura e da sociedade. Logo, a psicanálise pode ser aplicada, com o auxílio de certa flexibilidade e contribuição de outros autores além de Freud – diriam os menos ortodoxos – ao comportamento de todos os indivíduos e à compreensão de todos os fenômenos históricos e sociais, em todos os lugares e épocas. Portanto, a epistemologia subjacente ao pensamento psicanalítico fundamenta-se em essências universais. Há de se assumir que Freud partia de um paradigma essencialista, quando não biologizante, o que não fica bem diante dos modelos sociais construtivistas e neomarxistas.
O curioso é que foi Freud, ao recusar a hipótese de degeneração cerebral para os sintomas histéricos, quem iniciou o longo percurso no qual as causas biológicas e hereditárias foram cada vez mais postas de lado a favor da experiência adquirida e da importância do meio ambiente. Tanto o fundador da psicanálise, dando continuidade à sua obra nas décadas seguintes, quanto todos seus principais seguidores – Klein, Lacan, Winnicott, entre outros – seguiram a trilha no sentido de que supostas causas orgânicas foram mais e mais dando lugar ao meio ambiente. Da importância da vida infantil no adulto, à da vida do bebê na criança, hoje indo até a experiência intrauterina, como modo de compreensão do que aparentemente parecia ser genético. Mas a bem da verdade, se a psicanálise cada vez mais retrocede na importância do orgânico para a compreensão do ser humano, há uma transmissão de essências: seja por meio da linguagem, por meio do ambiente familiar e social, seja de inconsciente para inconsciente através das gerações e das culturas.
Curiosamente se vê críticas à psicanálise de autores e movimentos – como o feminista e o gay – que denunciam que aquilo que é tomado como ‘natural’ e biologicamente ‘normal’ não passa de preconceitos de vários tipos. E neste rol dos patronos do ‘natural’ e ‘normal’ alinham a psicanálise. Sem dúvida a crítica é válida quando se remete a psicanalistas e instituições psicanalíticas, que usaram um saber revolucionário em sua origem para defender, conscientemente ou não, as mais retrógradas crenças religiosas. Também é fato que, conceitos teórico-clínicos muitas vezes foram tomados em sentido literal e hipertrofiados por alguns psicanalistas, dando lugar a normatizações espúrias de comportamentos tidos como ‘naturais’ e ‘normais’. Mas a crítica não é justificável para a psicanálise em seu todo. Feministas e gays são autores e movimentos que não seriam hoje possíveis sem ter alguns de seus alicerces na psicanálise, primeira a denunciar o supostamente biológico e hereditário como fraude. Mas mesmo que muito pouco ou quase nada do comportamento esteja no DNA, a psicanálise trabalha com um pensamento essencialista.
Édipo e o enigma do inconsciente: três objeções jungianas
Uma vez consideradas as críticas do historicismo sobre o uso de longínquos mitos por um sistema psicológico atual e tendo assumido que o pensamento freudiano é essencialista, de modo que a psique dos antigos gregos é regida por princípios semelhantes aos da mente contemporânea, pode-se refletir sobre críticas mais específicas à interpretação do mito de Édipo.
Quanto à utilização feita por Freud do ciclo tebano devem ser consideradas três objeções à leitura psicanalítica. São críticas feitas por autores jungianos de peso, como o já mencionado Junito Brandão, um dos maiores conhecedores e pensadores brasileiros sobre a Grécia Antiga.
São estas as objeções: primeiro, que Édipo tivesse assassinado Laio como fruto de simples coincidência ou que nada diferente poderia ter feito, pois seu destino era apenas joguete da cega fatalidade e do capricho dos deuses; segundo, que Édipo tivesse se casado com Jocasta ou por mero dever das funções de chefe de estado ou porque o mito teria suas origens ainda em tempo que a sucessão ao poder passaria por uma linha matriarcal; terceiro, que Édipo, ao contrário do ódio que os psicanalistas dizem que teria de seu pai, não teria raiva de Jocasta embora ela fosse tão culpável pela tentativa de assassinato quanto seu primeiro marido. Muito pelo contrário, o casamento harmonioso de Édipo e Jocasta resultara em quatro filhos. Não por acaso, as três críticas à interpretação freudiana do mito de Édipo representam três principais críticas ao cerne da psicanálise.
- Édipo e Laio: resposta à primeira objeção -
Vejamos a primeira crítica. Acreditando que os Reis de Corinto, Pólibo e Mérope, fossem seus pais verdadeiros, Édipo fugira na tentativa extrema de evitar que a profecia a que estava destinado fosse cumprida. A primeira crítica é que o assassinato de Laio e de sua comitiva, cometido por Édipo na tríplice encruzilhada da estrada que o levaria a Tebas, foi fruto de mero azar, apenas uma funesta coincidência serem pai e filho, sem que nenhum dos dois soubesse. Ora, se Édipo fora abandonado quase recém-nascido, como poderia ter alguma noção de que Laio e Jocasta eram seus pais verdadeiros? A resposta a essa crítica, que também é a crítica a um dos pilares da psicanálise – a existência de um inconsciente dinâmico que guarde marcas mnêmicas desde o nascimento –, é que passou por cima de várias das sutilezas e nuances do mito e da peça de Sófocles. Édipo, já adulto, sem saber exatamente por que, sentira-se estranhamente abalado quando um bêbado numa festa o xingara de enjeitado. Por ter percebido que algo o atingira, além do racionalmente explicável, ou além do que seria emocionalmente razoável em virtude da simples ofensa por um despeitado, é que Édipo se dirigira ao oráculo e dele obtivera a resposta terrível de que estava destinado a matar seu pai e casar com sua mãe.
Édipo conscientemente acreditava serem os reis de Corinto seus pais verdadeiros e, quando questionados a esse respeito, eles confirmaram que de fato era seu filho. O herdeiro do trono de Corinto percebera que o xingamento ecoara de forma exagerada, sem que soubesse o motivo. Surgira o sintoma de que dentro de si algo se ocultava. A própria necessidade de consulta ao oráculo revela no mito e na peça a percepção de que existem conhecimentos e conhecimentos, isto é, possui-se apenas uma vaga intuição, um desconforto – o sintoma – sem saber de onde, nem por que ou para que, mas revelador de que há algo oculto dentro de nós mesmos, algo que nos é impedido conhecer mesmo que tentemos.
Todas as crianças, em intensidade variável, criam fantasias de adoção: os pais ruins, que a obrigam a dormir cedo e impedem que coma todos doces e sorvetes de uma vez só, além de possuírem inúmeros outros defeitos e falhas, devem tê-la raptado dos pais verdadeiros, provável e mui narcisicamente um rei e uma rainha, belos e perfeitos. O trágico em Édipo é que realmente possuía dois pares de pais. Um par que, sem nenhum remorso aparente, ordenara além de sua morte também a mutilação de seus pés. Outro par que o amara e criara como filho verdadeiro. Pólibo e Mérope afetivamente são os verdadeiros pais de Édipo e assim se sentem. De forma simbólica responderam ao filho a verdade. Ou seria mentira o que disseram os Reis de Corinto, quando questionados pelo filho. Mas a resposta deles também pode ser vista como uma representação mítica da dúvida de que se alguém pode amar os que não sejam da mesma carne: se o amor entre pais e filhos é inato ou adquirido, se passa pelo sangue ou é conquistado? Perplexo, Édipo indaga ao Mensageiro de Corinto, que lhe revelara ser adotado, sobre a dedicação de quem sempre conscientemente tivera por pai:
ÉDIPO – Por que, então, ele chamava-me de filho?
MENSAGEIRO – O rei te recebeu, senhor, recém-nascido
– escuta bem –, de minhas mãos como um presente.
ÉDIPO – E ele me amava tanto, a mim, que lhe viera
de mãos estranhas? É plausível esse afeto?
(Sófocles, 1990, p. 71)
Apesar de ter ocorrido em uma época em que Édipo ainda não podia falar, a tentativa de assassinato ficara inscrita no próprio corpo do bebê, por meio da mutilação dos pés, donde Œdipous = pés inchados. A arte grega antiga sempre representava Édipo com um grande chapéu de peregrino viajante, apoiando-se em um bastão por causa de sua dificuldade de andar. Também é um tema simbólico a ser aproveitado por todo o pensamento psicossomático contemporâneo.
Além da marca em seu próprio corpo, ficara gravada em sua mente – de forma não verbal – a lembrança oculta de um pai filicida. Pode-se supor o ódio gerado na indefesa vítima. Adulto, Édipo não sabia que aquele Laio da encruzilhada era seu pai verdadeiro. O trágico está na coincidência articulada pelo destino. Mas tendo em si a imago de um pai filicida, produzindo ódio na mesma proporção, Édipo estava destinado a matar qualquer um que se encaixasse em sua imago paterna, eventualmente até mesmo o próprio Pólibo, o pai conscientemente amado. A universalidade da ambivalência humana, tema tão caro para Freud. Por isso, Édipo fugira de Corinto, mas carregando consigo sua neurose.
Na tríplice encruzilhada – ao mesmo tempo símbolo do destino e da liberdade de escolha – Laio comportara-se como um pai autoritário, arrogante e cruel. Viajava sem trajes reais e sem grande comitiva: não podia ser reconhecido como um rei a ter sempre direito de passar primeiro. Por uma mera briga de trânsito, Laio agredira Édipo no rosto com um bastão. Não tão estranho se lembrarmos que Laio, antes de seu casamento com Jocasta, seduzira um adolescente – que se suicidaria – contra a vontade do pai do menino. A pederastia era aceita na Grécia Antiga, quando autorizada pelo pai, desrespeitar a autoridade paterna, jamais. Sem falar no filicídio posterior.
Questionar que Édipo pudesse ter em si a lembrança, mesmo que inscrita de modo pré-verbal, do que lhe sucedera após o nascimento equivale a questionar se é possível lembrarmos de algum modo de tudo, a vida toda, mesmo sem possuir acesso voluntário a esse conhecimento. Equivale a questionar também se essas inscrições podem produzir efeitos, mesmo que distorcidos da causa original, ao longo da vida, além de questionar se todo relacionamento também não é uma reedição dos relacionamentos passados. Isto é, equivale a questionar a existência de um inconsciente dinâmico, a existência do recalque, os efeitos concretos da transferência: a não aceitar o de onde, o porquê e o para que dos sintomas.
– Édipo e Jocasta: resposta à segunda e à terceira objeções –
A segunda crítica é que Édipo se casara com Jocasta por mera obrigação. Parece-nos pouco provável que os cidadãos de Tebas, desesperados pela peste representada pela Esfinge, e agora ainda por cima sem um rei, decidissem premiar seu salvador, outorgando-lhe o poder e a mão da rainha, se ela não fosse uma mulher ainda atraente. Um pouco mais velha que o salvador de Tebas, é verdade, mas para os gregos, cuja pólis era sempre orgulho máximo, não é plausível que oferecessem Jocasta como prêmio se não a considerassem à altura. O mais curioso é que no Édipo Rei, de Sófocles, apesar de ser uma versão tardia do mito, não há sequer a menção de o casamento ter sido por imposição. Ao contrário, o trágico ateniense não mencionando o motivo, faz supor Édipo ter desposado Jocasta por sua livre escolha. De qualquer modo foi ao menos uma relação suficientemente satisfatória, tanto que foi consumada com o nascimento de quatro filhos.
Questionar que Édipo tivesse alguma atração por Jocasta, tratando-se de um casamento por razões de estado, equivale a questionar o próprio desejo edípico como sexual. Equivale também a questionar a própria existência da sexualidade infantil, que constitui outro dos pilares teórico-práticos de Freud. Sem a sexualidade infantil, que possui como fulcro o complexo de Édipo, não existe articulação possível entre o campo das neuroses e das perversões e o campo da sexualidade adulta.
A terceira crítica curiosamente se opõe de modo ilógico à segunda: aceita-se que Édipo até mesmo tenha tido desejo de matar o pai, mas não sentia raiva alguma por Jocasta, tão filicida quanto o primeiro marido, tanto que um casamento harmonioso resultara em quatro filhos. Se, por um lado, Édipo mata Laio com as próprias mãos, por outro, embora não tenha sido fisicamente o autor da morte de Jocasta, foi em parte o responsável. Pouco antes Jocasta implorara a Édipo que não prosseguisse em sua busca. Lembremos ainda os famosos versos ditos pela rainha de Tebas, que também mostram seu desdém pelo sonho e a revelação onírica do desejo incestuoso:
JOCASTA – O medo em tempo algum é proveitoso ao homem.
O acaso cego é seu senhor inevitável
e ele não tem sequer pressentimento claro
de coisa alguma; é mais sensato abandonarmos
até onde podemos à fortuna instável.
Não deve amedrontar-te, então, o pensamento
dessa união com tua mãe; muitos mortais
em sonho já subiram ao leito materno.
Vive melhor quem não se prende a tais receios.
(Sófocles, 1990, p. 68)
Momentos depois do pouco caso pelo sonho e o incesto, tendo escutado o relato do mensageiro e antigo pastor de Corinto, Jocasta, em pânico, se conduz ao oposto: implora a Édipo que cesse a investigação. Porque antes do próprio filho-esposo concluiu o início e o final da trama
JOCASTA – Peço-te pelos deuses! Se ainda te interessas
por tua vida, livra-te destas ideias!
(Sófocles, 1990, p. 74)
Mas Édipo simboliza o filósofo. Semelhantemente ao neurótico obsessivo, procura pela verdade a qualquer preço. Só que, em vez de encobri-la dentro da busca obsessiva em um labirinto sem fim como faz o neurótico, a encontra. Jocasta, que no primeiro momento representava o desdém pelo inconsciente, agora representa o papel da acomodação, do ‘vamos ficar por aqui porque ir além é perigoso; desde que ninguém mais saiba a verdade, tudo pode ficar como está’.
Édipo jurou buscar a verdade a qualquer preço, que difere do conhecimento fáustico. Fausto, mito moderno da busca do conhecimento, que também independe do custo, prescinde de um princípio ético, o que pode ser tomado como uma metáfora do poder pelo poder e da desmedida (hybris) da ciência moderna. Édipo crê na existência de um princípio ou origem (arché) unificando destino e cosmos. Nesse princípio ancora-se a verdade (aletheia): o Sentido do Ser e a Verdade do Ser são um. Se esse princípio provém dos deuses ou da vontade humana, não há como inferir. Para Jocasta, ao contrário, há apenas o acaso cego, a fortuna instável, a necessidade sem propósito outro que si mesma. Logo, o oportunismo é a conduta que lhe parece mais sensata. Sem dúvida, eticamente trata-se de um papel deplorável, embora bastante coerente com a misoginia e a perspectiva patriarcal da cultura grega antiga.
O resultado concreto da conduta de Édipo é o suicídio de sua esposa-mãe. Se a imago do pai filicida se projetou sobre a imagem de um desconhecido brutal encontrado numa encruzilhada, a imago de uma mãe filicida se encaixou na de uma mulher que nunca se importou em descobrir quem assassinara o primeiro marido, que fora nada menos que um rei. Mais que um regicídio sem punição ser abominável para uma sociedade patriarcal, o que o rei e marido que sucedeu poderia esperar de quem tivera de mandar matar o único filho, por que, caso ele crescesse e ocorresse conflito, tomaria partido do filho, e não do marido? Sendo Jocasta uma regida em potencial e Édipo o novo rei, nada poderia ser uma união mais ambivalente. A imago inconsciente do início da vida se projetou na imagem da mulher amada, que pelo azar do destino também eram a mesma pessoa. As ações de Édipo são fruto de uma agressividade que se expressa junto com o amor, assim como um ódio que se utiliza da sexualidade para poder se expressar. Não pode existir maior desrespeito ao pai que fisicamente eliminá-lo nem à mãe que consumar o ato sexual.
Questionar que Édipo tivesse algum ódio por sua mãe filicida equivale a questionar a importância da agressividade humana e seus múltiplos disfarces. De modo mais simbólico, equivale também a questionar a ambivalência e a destrutividade contidas na sexualidade infantil. Podemos ir um pouco além, supondo que também equivale a questionar os motivos que obrigaram Freud a se dirigir, a partir de 1920, à segunda teoria das pulsões. Aceitemos ou não essa teoria, uma justificativa para a agressividade e o prazer em executá-la se torna essencial para qualquer tentativa de compreensão do comportamento humano. Tanto do ponto de vista clínico quanto da necessidade de conseguir explicar a orgia de destrutividade que consistira na Primeira Guerra Mundial (à época apenas 'a Guerra Mundial), o véu que há mais de um século Sade, Sacher-Masoch, Dostoievski, Nietzsche, entre outros, vinham retirando das idealizações iluministas da natureza humana, não podia mais ser recolocado. A não ser que, como as religiões mais primitivas, justificasse a destrutividade humana ao preço de maciça negação e projeção: coisa do demônio.
A imagem poética do mito e da peça de Sófocles se completa com sua segunda mutilação. Nada mais cruel e doloroso que furar os olhos. Cena que tanto na Antiguidade quanto hoje produz catarse no espectador ou no leitor. Culpa e castração, binômio imprescindível tanto para a compreensão da neurose, da perversão e da sexualidade adulta, quanto para a compreensão da autodestrutividade humana.
Édipo: os enigmas da razão (logos) e da filosofia
Deve-se assinalar que, embora o destino de Édipo seja terrível, sua imagem para os gregos antigos possuía características muito positivas. Simboliza a busca da verdade a qualquer preço que, como vimos, ao contrário da busca de conhecimento a qualquer preço, possui sempre um caráter ético. Por existir uma origem unindo o sentido à verdade, o conhecimento deixa de existir apenas como um amontoado de informações e passa a ter coerência orgânica, a ter um propósito, que esteja em consonância com a natureza e o caráter humanos (ethos, donde o ethos antropo daimon, do fragmento 119 de Heráclito (Kahn, 2011, p. 210-211), que pode ser traduzido como ‘o caráter é o destino do homem’).
É notável o contraste entre a irracionalidade e a violência de Édipo quando se defrontou com Laio e sua comitiva – que atingem em cheio sua neurose –, com sua atitude serena diante da Esfinge. Criatura sobrenatural representando – assim como as harpias ou as sereias – almas dos mortos retornando para buscar os vivos, Édipo permanece impassível diante da ameaça da morte. Enquanto outros heróis (Ulisses, Perseu, Hércules), que fazem uso de talismãs sobrenaturais, têm a seu lado a presença de algum deus ou até mesmo são de origem semidivina. Édipo soluciona o enigma apenas por meio do uso da razão. O futuro sempre aparece como enigma: o medo da morte, que todo novo contém em si e que se não for decifrado também impedirá trazer o que o novo possui de bom.
Édipo também simboliza o ser humano e seu logos como um poder mais forte que o sobrenatural, único capaz de vencer o medo. O Senhor de Tebas funda um racionalismo, mas um racionalismo iluminista e humanista. Não a crença cega no poder de uma razão suprassensível, o que serve de justificativa para alguns, julgando-se iluminados, colocarem a teoria e a ideologia acima do ser humano, criando sistemas totalitários e distópicos. O racionalismo simbolizado por Édipo é centrado no homem, o tipo de saber pelo qual, quase vinte e cinco séculos depois de Sófocles, Freud tanto buscou para explicar o aparente irracionalismo do ser humano.
A imagem positiva de Édipo já fazia com que no ciclo épico mais antigo, que muito antecede a versão de Sófocles, fosse relatado um segundo casamento, do qual seriam seus filhos e não de Jocasta, bem como sua permanência no trono por muitos anos até morrer em combate (Grimal, 2002, p. 323-325). Só quem buscou a verdade a qualquer preço e a encontrou pode ser um governante justo. E como já foi mencionado, motivo pelo qual Sófocles, em sua variante patriótica ateniense, completada principalmente por Édipo em Colona, exila Édipo, mas descreve o lugar de seu desaparecimento como abençoado pelos deuses. Fazendo com que Édipo misteriosamente termine seu destino próximo de Atenas, o trágico ateniense procurou justificar sua cidade como capital da Grécia Clássica, pólis de Sócrates e Platão.
Uma versão mais apurada do mito clássico relata que, quando questionado pela Esfinge sobre qual o animal que de manhã anda de quatro patas (tetrapous), ao meio-dia em duas (dipous) e a tarde com três patas (tripous). Resposta: o bebê que engatinha, o homem adulto e o velho de bengala, três momentos da existência humana. Mas Édipo não respondera ‘o homem’, apenas teria batido com o punho no próprio peito ou teria espalmado a mão sobre a face (afinal, ele era Oedipous / Œdipous). Ninguém decifrava a Esfinge porque o enigma proposto possuía sempre uma resposta muito simples e muito difícil: a resposta era o próprio interrogado e não algo externo a si. A imagem de Édipo diante da esfinge – imagem que acompanhou Freud até ao vaso grego que escolheu e onde repousam suas cinzas em Londres – simboliza que toda época em que se procurar pela solução dos grandes problemas, a partir de próprio ser humano e não de algo ou alguma entidade externa, será uma época de humanismo, conhecimento e prosperidade.
Para os gregos da época clássica – a de Sócrates e Platão – Édipo era mais do que um herói, mas tornara-se ente semidivino a ser cultuado em Atenas, cidade cuja padroeira era a deusa da sabedoria. Motivo pelo qual Sófocles aproveitou uma variante patriótica mais recente, ou ele mesmo criou a nova versão do mito, na qual Édipo morre de em Colona, subúrbio de Atenas. No século II o viajante e geógrafo grego Pausânias relata haver na Acrópole de Atenas um monumento a Édipo, cujos ossos teriam sido zelosamente trazidos de Tebas. E que a um quilômetro de distância, próximo à Academia e a um monumento a seu fundador Platão, havia uma capela. Era dedicada a Adrasto, rei de Argos durante a guerra dos ‘Sete Contra Tebas’; a Teseu, fundador e primeiro rei de Atenas; a seu amigo Piritoo, rei dos Lápidas, que com ajuda de Hércules venceu os centauros, vitória que significava a derrota da barbárie pela civilização; e também dedicada a Édipo (Pausanias, v. I, s.d., p. 145 e 169).
Em os Três ensaios sobre a sexualidade, no segundo ensaio, sobre a sexualidade infantil, com um subtítulo colocado ao lado esquerdo da página, A pulsão de conhecimento (Wisstrieb), é ancorada essa pulsão, também nomeada de pulsão do pesquisador (Forschertrieb), junto ao ápice das manifestações sexuais da primeira infância, entre os três e os cinco anos.
Essa pulsão não pode ser computada entre os componentes pulsionais elementares, nem exclusivamente subordinada à sexualidade. Sua atividade corresponde, de um lado, a uma forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com a energia escopofílica. Suas relações com a vida sexual entretanto, são particularmente significativas, já que constatamos pela psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída, de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles (Freud, [1905] 1996, p. 183).
Em seguida, com o subtítulo lateral O enigma da esfinge, Freud comenta que são não os interesses teóricos mas os interesses práticos o que move as pesquisas infantis. De onde vêm os bebês? Isto é de onde vim, de onde vêm os melífluos concorrentes, os irmãozinhos? E que o enigma de onde vêm os bebês é ‘de uma forma distorcida, mas que pode ser facilmente corrigida, o mesmo enigma da esfinge tebana’ (Freud, 1978, p. 183). O texto poucos anos depois e conhecido popularmente como Pequeno Hans foi concebido para ser a ilustração dos Três ensaios. Quando o pai leva Hans pessoalmente até Freud o menino escuta do mestre que:
[...] muito antes que ele viesse ao mundo eu já sabia que um pequeno Hans iria chegar e que ele iria gostar tanto de sua mãe que, por causa disso, não deixaria de sentir medo de seu pai; e também contei isso ao seu pai (Freud, 1978, p. 42, tradução do autor).
O menino confirma para Freud seu drama pessoal e fica tão impressionado que, no caminho de casa, pergunta a seu pai: ‘Será que o professor conversa com Deus?’ (Freud, 1978, p. 42, tradução do autor).
Só que, além da pergunta sobre a origem dos bebês, da pergunta do que fazer diante da atração pela mãe e da ambivalência em relação ao pai (e vice-versa), Freud também escreve no mesmo texto sobre Hans e a terceira parte do enigma da esfinge.
Uma vez ele bateu na calçada com a sua vara e disse: “Escute, tem algum homem aqui embaixo? – tem alguém enterrado? – ou isso é só no cemitério?’ Então ele está ocupado não só com o enigma da vida, mas também com o enigma da morte (Freud, 1978, p. 69).
Freud descrevia como primevas três fantasias infantis que sempre encontrara em todos os pacientes: cena primária, sedução e castração. Interpretamos como as três partes do enigma da Esfinge. De onde vim? – isso que alucino é o ato sexual de minha própria criação? O que faço? – posso ou não executar o desejo que tenho de amor e morte pelos que me cercam? Para onde vou? – pode a morte ser o não significado absoluto, perda de tudo? Dessa forma, as fantasias primevas podem ser vistas como as três respostas da criança diante do enigma. Isso significa que não precisamos aceitar essas fantasias, embora universais, como uma herança filogenética, e sim como três posições subjetivas a partir das quais a criança no triângulo edípico procura elaborar o trauma sexual primevo.
As três partes do enigma da esfinge e a resposta de Édipo também podem ser correlacionadas com a tarefa da filosofia. Em seu livro Lógica Emmanuel Kant (1982) descreve que o domínio do saber filosófico se remete as seguintes questões: Que posso saber? - Que devo fazer? - Que me é permitido esperar? - Que é o homem? Cada uma das três primeiras questões origina uma disciplina: a primeira origina a epistemologia, a segunda a ética, e a terceira a metafísica (aqui não se está usando a terminologia kantiana para designar esses saberes, mas os termos mais comuns em filosofia). Contudo, para Kant as três questões remetem à quarta questão que é a mais importante: Que é o homem? A pergunta que funda a mais importante das disciplinas: a antropologia. Oito anos após a terceira e última das ‘críticas’, Kant publica a versão final do curso que lecionara durante quase vinte e cinco anos: A antropologia do ponto de vista pragmático. Quem diria? O pequeno Hans não parece ser apenas “o protótipo de todos os vícios”, como Freud carinhosamente o apelidou, mas também o protótipo de todos os filósofos.
Édipo e os enigmas da esfinge: versões borromeanas
Entre filosofia e psicanálise é conhecida a grande influência de Martin Heidegger sobre Lacan, que o cita elogiosamente várias vezes e traduziu para o francês o importantíssimo ensaio de Heidegger intitulado Logos, tendo sido um dos primeiros tradutores do pensador alemão. Justamente sobre as questões que Kant em sua Lógica propusera como fundadoras da filosofia comenta Heidegger em Kant e o problema da metafísica, livro imediatamente posterior a Ser e tempo, que um ser todo-poderoso jamais se indagaria de tais coisas. Do mesmo modo, tais perguntas remetem à quarta – Que é o homem? – donde uma antropologia filosófica deve tomar por fundamento a finitude humana.
Aquele que interroga sobre seu poder manifesta assim sua finitude. E aquele para quem tal questão toca em seu interesse mais íntimo, experimenta no mais íntimo sua finitude. [...] Entretanto, não se trata de para ele de eliminar o poder, o saber e a esperança, para se livrar da finitude mas, pelo contrário, de se assegurar desta finitude para nela se manter (Heidegger, 1981, p. 273, tradução do autor).
Finitude, vazio, não ser, alguns dos termos filosóficos que, somando-se a muitos outros, estão na origem do objeto a lacaniano. Assim, podemos compreender as três partes do enigma da esfinge como as três tarefas da filosofia quando do registro do simbólico. De onde vêm os bebês? Que posso saber? Epistemologia. Como lidar com o amor e o ódio em relação aos pais? Que devo fazer? Ética. Há algo depois da morte? Que me é permitido esperar? Metafísica. Quem ou o que sou eu? Antroplogia - Œdipous, Hans. Só seres humanos filosofam. Só os seres humanos fazem perguntas abstrusas e pouco práticas como a mais famosa de Heidegger: “Por que existe o Ser e não apenas o nada?”
Mas a filosofia propriamente dita, em sentido mais estrito, pertence à tradição ocidental. Mesmo quando hoje transposta a todos os lugares do mundo. A resposta ao enigma da esfinge, quando do registro do imaginário, fornece a chave para o modo como todas as culturas sempre forneceram as respostas mais antigas às três partes do enigma da esfinge: mito, rito e fantasia. Considerando aqui fantasia no sentido freudiano mais original, uma defesa alienante contra a realidade e o trauma, não na acepção kleiniana de algo que sempre flui em paralelo com a consciência, enriquecendo e criando. Só seres humanos imaginam fantasmas e quimeras. Mito, rito e fantasia formam a essência das religiões. Só os seres humanos inventam religiões.
Se lembrarmos do sonho da injeção em Irma relatado por Freud em A interpretação dos sonhos, com a imagem aterrorizante que ele via na garganta de sua paciente – “grandes manchas brancas”, “extraordinárias formações em espiral”, “sobre elas escaras branco acinzentadas” – atingindo um real verdadeiro diante do qual todas as palavras estancam, podemos ilustrar o enigma da esfinge no registro do real. Primeiro, com o desejo e o horror de presenciar o ato sexual dos pais, de ver a própria origem; segundo, com o desejo e o horror da sedução concreta e genital da própria mãe; terceiro com o desejo e o horror da castração última, a morte. Três formas de gozo absoluto e indizível, três fantasias primevas segundo Freud. Não se trata de fantasias comuns na acepção mais comum do termo, mas tal qual o sonho de Irma deixa a narrativa do sonho pelo simbólico e é invadido por um horror indizível, as fantasias primevas são penetradas por um real inominável. Só os seres humanos as possuem. Só os seres humanos buscam a lei para transgredi-la e um gozo além do que seria permitido por sua finitude.
Finitude, um dos muitos nomes, dos muitos conceitos de outros autores dos quais Lacan criou o objeto a. Não por menos Heidegger, no texto A coisa (Das Ding), discorre sobre a finitude por meio da metáfora do vazio de um jarro.
Os lados e o fundo, dos quais consiste o jarro e pelo qual ele fica em pé, não são o que o que na verdade contem. Mas se o conter é realizado pelo vazio do jarro, e então, dito de modo mais preciso, o oleiro que forma o os lados e o fundo em seu torno não é quem molda o barro. Ele só molda o barro. Não – ele molda o vazio. [...] (Heidegger, 2001, p. 167).
Um dos principais comentadores de Heidegger diz que, apesar de o filósofo afirmar que o idioma alemão tem acesso privilegiado ao Ser e que ‘filosofia só se faz em grego e alemão’, o texto de A coisa é aqui e em outros pontos uma tradução quase literal decalcada um dos poemas de Lao Tse, pensador chinês do século V ou IV a.C, autor do Tao Te King (Richardson, 1974, p. 169, 571).
Embora Lacan ainda não tivesse concebido a articulação borremeana através do objeto a, no seminário sobre Os escritos técnicos de Freud (Lacan, 1986, p. 308-309), ele situa aquilo que denomina de “as três paixões fundamentais” e sua relação com os registros do real, simbólico e imaginário: a ignorância na junção do real e do simbólico, o amor na junção do simbólico e do imaginário e o ódio na junção do imaginário e do real. Se as respostas ao enigma predominam pela filosofia no registro do simbólico, é quando ela sai de sua autocomplacência idealista e se curva enquanto ignorância diante do real, que surge a necessidade de empiricamente pesquisar o desconhecido: fazer ciência, a proposta de um saber sempre limitado, nem um nem outro. A esperança de que as perguntas terríveis do real e seu horror possam, ao menos parcialmente, ser respondidas. Se as respostas ao enigma predominam pela religião no registro do imaginário, é quando ela sai de sua onipotência delirante, abdica de ser a explicação única para os enigmas, deixando de ser crença narcísica unindo-se ao simbólico através de alguma forma de linguagem e cria os alicerces para a arte. Freud e Klein romanticamente elevaram a sublimação como a forma mais extrema de gratidão e de amor, do sentido de completude, um e outro. Mas se as respostas ao enigma pela religião no registro do imaginário se superpõem diante daquelas do real com seu terror indizível do trauma sexual primevo, só resta eliminar no outro toda a percepção da própria diferença, unem-se fundamentalismo e horror: a guerra. Domina o ódio, a falta de sentido, um ou outro.
Conclusão: Édipo e o destino da psicanálise
Sem dúvida, é curioso que as três críticas diretas por um viés jungiano à interpretação do mito de Édipo em seu bojo reflitam a crítica aos principais fundamentos da psicanálise pelo organicismo: a existência do inconsciente dinâmico, do recalque e dos efeitos concretos da transferência; a existência da sexualidade infantil, bem como os motivos que levaram Freud a postular a segunda teoria das pulsões. Também é curioso que o ciclo mítico seja frequentemente associado somente a algo nefasto, quando na realidade possui, desde a Grécia clássica, também características auspiciosas e toda uma discussão sobre liberdade e destino, amor e ódio, verdade e encobrimento.
Desde a primeira carta de 1897, quando Freud, a partir de sua autoanálise, faz a primeira menção a Édipo, passando pela Interpretação dos sonhos até os últimos escritos de 1938-1939, o destino da psicanálise está atrelado ao mito e à tragédia de Sófocles. A orientação teórica e a prática clínica do saber psicanalítico contrastam tanto contra o dogmatismo religioso, ancorando a essência do ser humano fora de si mesmo, quanto contra o pseudoliberalismo do vale-tudo e do imediatismo de resultados, que desconhecem qualquer propósito ético, rebaixando a essência do ser humano no acaso cego e apenas na lei do mais forte.
Se nos detivemos no enigma da esfinge tanto quanto no drama de Édipo, pode não ter sido por mero capricho. Pausânias, viajante e geógrafo grego já mencionado, cujas descrições são uma das grandes fontes sobre a Antiguidade, relata uma curiosa variante do mito de Édipo no que concerne à origem da esfinge, mais comumente filha de Ortros, um cão de duas cabeças com rabo de serpente, ou de Tifão um gigante, e das monstruosas Quimera ou Equidna. “Há uma outra versão da história que a faz uma filha natural de Laio [...]” (Pausanias, v. IV, s.d., p. 283).
Abstract
Œdipus myth and Sophocles tragedy as psychoanalytic paradigm focus. Answer to jungian objection to the psychoanalytical interpretation. Importance of Oedipus myth in classical Greece. Several readings to the sphinx’s riddle. Infantile sexuality, epistemophilic instinct, primeval fantasies. The question ‘what is man’ through Kant’s and Heidegger’s views. The enigm solution through the Borromean knot.
Keywords: Œdipus, Myth, Enigm, Infantile sexuality, Epistemophilic instinct, Primal phnatasies, Finitude, Borromeano knot.
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Recebido em: 28/09/2015
Aprovado em: 13/10/2015
Sobre o autor
Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela UFRJ.
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico do CBP-RJ.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, do CBP.
Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2016.
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), 2004-2006.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e adjunto da Faculdade de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.
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