Introdução
A defesa da alfabetização, escrita e leitura como conteúdos essenciais ao ensino, necessários para a plena inserção do ser humano na cultura e sociedade, costuma enfatizar tais conteúdos como veículos indispensáveis para a transmissão da quantidade necessária de informações na cultura contemporânea. Em si mesmas os atos da escrita e leitura não tornariam alguém melhor, mais ético ou com capacidade de exercer de forma mais plena sua cidadania. Tomando de modo coerente a defesa desta idéia temos, por exemplo, alguns dos editoriais dos Boletins da ALB, onde a escrita e a leitura por si próprias possuem valor apenas como modo de transmitir conhecimento:
(...) não há como estabelecer vínculo direto entre prática da leitura e formação do cidadão ou aumento do capital ético social. (1998)
Para uma vasta gama de especialistas em leitura, por exemplo, programas de promoção da leitura, tendo, como exemplo, o PROLER (1998), pecam por uma política considerada elitista de que "ler faz bem", “ler ajuda a subir na vida”ou "ler melhora a pessoa". Tal política em realidade disfarçaria uma ideologia burguesa e moralista que encara a leitura a partir da ótica de classes privilegiadas: forma de lazer "de bom tom". Vertente mais atualizada desta ideologia seria a concepção ancorada em Roland Barthes (1987): o hedonismo da leitura, “leia por que dá prazer”. Na real, concreta e indiscutível miséria de nosso país, todo prazer que implica em maior custo monetário pode ser considerado supérfluo, não um direito inalienável do ser humano.
Sem dúvida, como assinala Percival Leme Brito (Silva, 1998), por detrás das idéias da leitura como forma de redenção, ou da leitura como meio para ascenção social, esconde-se uma ótica perversa de exclusão e manutenção da injustiça social. Logo, não se trata de refutar a análise sócio-política sobre as concepções elitistas de leitura, ou de refutar a análise sobre a manipulação partidária dos programas oficiais de promoção de leitura, mas procurar por respostas que nos conduzam além destas críticas.
Apesar de premente, responder a tais críticas, que possuem excelentes defensores e a calcam em vasto conhecimento teórico-prático, torna-se tarefa bem mais complexa e difícil se procuramos fundamentá-la além do "eu acho que...". Trata-se de defender a idéia de que não apenas a alfabetização - cuja defesa é bem mais fácil - mas a leitura e a escrita constituem atos que em si mesmos, não apenas pela informação ou prazer que veiculam, são potencialmente organizadores do pensamento e de valores, construtores de consciência individual e social. Criadoras dos vários formas como desdobra-se a consciência, uma das conseqüências da tese a ser defendida é a de o ato da leitura e o ato da escrita hoje constituem, em si mesmos, condição necessária, embora não suficiente, para construção e exercício da cidadania.
Na defesa de que escrita e leitura como atos possuem por si mesmas tal poder, decidimos utilizar conhecimentos heterodoxos: teoria geral de sistemas, noções de causalidade da física e da filosofia, noções seqüestradas da etologia, biologia e linguística. Como ponto de partida tomamos a apresentação da apropriação que outro autor, hoje visto com mais seriedade que há uma década, realizou dos mais diversos saberes: Edgar Morin.
Edgar Morin e o Pensamento Pós-Moderno
O pensador francês Edgar Morin (s.d.;1998), cuja formação inicial foi na área das ciências sociais, é provavelmente o criador de um dos maiores - quiçá dos últimos - sistemas filosóficos do final do século XX. Ao contrário de pensadores como Lyotard, Foucault, Derrida, e apesar de utilizar muitos conceitos e idéias retirados do estruturalismo e da psicanálise francesa, principalmente de Claude Levi-Strauss e de Jacques Lacan, Edgar Morin também utiliza de modo maciço dados fornecidos pelas ciências mais exatas ou pragmáticas: antropologia física, teoria geral dos sistemas, genética, neurofisiologia, as concepções de Chomsky sobre inteligência e linguagem, entre outras.
Preferimos opor as idéias de Morin à verborragia bastante suspeita de que alguns autores estruturalistas ou pós-estruturalistas, ou seus epígonos, justa ou injustamente podem ser acusados. Fundamentados quase exclusivamente nas ciências rotuladas há tempos de humanas, estes autores muitas vezes parecem rodopiar mordendo a própria cauda, circularmente conceituado sobre os próprios conceitos, reduzindo todos objetos à alguma forma de análise estritamente formal - em aparência tratar-se-ia de uma análise teórica bem diferente daquela proposta pela filosofia da linguagem wittgensteiniana e pelo positivismo lógico, mas os resultados ideológicos e hegemônicos no meio acadêmico muitas vezes não são muito diversos. Já o sistema de Morin constitui um exemplo de ecletismo pós-moderno, que além de aliar um vasto enciclopedismo humanista às ciências naturais, propõe conclusões mais palpáveis, além de não escamotear as questões nevrálgicas da filosofia.
De acordo com Kant a tarefa da filosofia pode ser sintetizada por três indagações: Que posso conhecer?, Que devo fazer?, Que me é permitido esperar? Questões que desde seu livro Lógica Kant (1982) remetem a uma quarta e mais importante pergunta: Que é o homem? Com esta questão centrou o filósofo de Koenigsberg a Antropologia Filosófica como fulcro da Filosofia. Todo sistema de Edgar Morin pode ser caracterizado como vasta e abrangente Antropologia Filosófica, mas sob a forma de um saber que não pode e deve prescindir do conhecimento e dos problemas fornecidos pelas ciências mais exatas ou pragmáticas, seguindo novamente o aforisma kantiano de que a filosofia sem a ciência é vazia, enquanto que a ciência sem a filosofia é cega.
Melhor que pós-moderno, preferimos rotular Morin de alexandrino, no paralelo com a antiga Alexandria, também uma época de universalização e homogeneização da cultura, época em que não resta ao pensamento mais que ser eclético e que a maior parte do conhecimento é de algum modo importada e exógena. Mas o alexandrinismo de Morin não se perde em um ecletismo beletrista e acadêmico, nem em uma racionalização ideológica do processo de globalização, e sim é centralizado, sem o preconceito dos modismos, na criação de uma Antropologia Filosófica que tanto possa responder questões essenciais para a compreensão da sociedade, quanto ser aplicada em diferentes áreas.
Dentre os pensadores influenciados por Morin está o biólogo Humberto Maturana (1997), também já publicado no Brasil, que a semelhança dos hoje famosos biólogos e Prêmios Nobel François Jacob e Jacques Monod, muito ultrapassou sua ciência de origem para igualmente aplicá-la em uma Antropologia Filosófica. Além da influência de Edgar Morin, Noam Chomsky e suas reflexões sobre a lingüística também estão no cerne dos interesses de Maturana.
Uma breve exposição de algumas idéias de Morin, complementada por algumas de reflexões de Maturana, podem auxiliar-nos no caminho de algumas propostas pertinentes à defesa da alfabetização e dos atos da leitura e da escrita como fulcros da educação.
Entropia
Tomando como fundamento a descrição que Edgar Morin (s.d.), a partir da Teoria Geral dos Sistemas, estes podem ser divididos em dois tipos: 1) simples ou complexos e 2) hipercomplexos. Os do primeiro tipo podem variar quanto ao número de componentes, contudo esta variação não produz uma diferença qualitativa. Sistemas simples ou complexos possuem um número mensurável de componentes, funcionam de acordo com uma causalidade linear e obedecem à Segunda Lei da Termodinâmica. Tal lei da física, há muito extrapolada para outras áreas como a Teoria Geral de Sistemas, diz em seu enunciado que um sistema fechado e heterogêneo em suas partes, i.e. que não receba qualquer auxílio ou modificação a partir de outro sistema, torna-se ao longo do tempo cada vez mais incapaz de produzir trabalho, tendendo sempre a homogeneidade interna.
A incapacidade em produzir trabalho e a tendência para a homogeneidade foram batizadas de entropia. A Segunda Lei da Termodinâmica, que possui por fulcro o conceito de trabalho útil (T) da física, ao ser ampliada como analogia para outras áreas do conhecimento, foi vulgarizada como sendo a tendência crescente para a desorganização, para a entropia. À parte a curiosidade de que para a física a Segunda Lei da Termodinâmica possa talvez ser a única prova científica de que em natureza o tempo flui apenas em uma direção - sendo todos demais conceitos subsumidos como tempo em realidade a apreensão psicológica ou a duração biológica ou a ritmicidade de eventos em objetos físicos - a noção de entropia produziu outros grandes problemas, desde a física até a filosofia.
Pela noção de entropia sistemas simples ou complexos fechados tendem de modo crescente para a desorganização e homogeneidade. Dito de outro modo, cada componente do sistema possui uma taxa mensurável de desgaste, o sistema como um todo possui uma tendência ao erro tanto pelo desgaste de suas partes como pela probabilidade de má interação entre suas partes. Todas máquinas construídas pelo homem, por enquanto, caracterizam-se como sistemas ou máquinas simples, isto é, ao longo do tempo, por melhor que sejam construídas, apresentam desgaste pelo uso, tendendo em um prazo variável (que em máquinas mais recentes pode ser de séculos) a pararem de produzir trabalho. Surge então a necessidade de que um elemento pertencente a outro sistema interaja e conserte a máquina simples. Dito de outro modo, a máquina simples tende para a desordem e necessita cedo ou tarde que seja consertada, que outro sistema forneça-lhe a partir de si mesmo nova ordenação.
Apesar da constatação da física sobre a entropia, a complexificação crescente da maior parte do universo e da vida na Terra (apesar de alguns exemplos contrários, como o anfiôxo, criatura que sobreviveu tornando-se mais simples que seus antepassados) parece ir em direção oposta. Para expressar a tendência crescente em oposição à entropia foi cunhado o termo entropia negativa ou neguentropia. Dois pontos de vista podem ser abordados tanto em física como em filosofia: 1) desde o Big Bang inicial o universo vem expandindo-se e organizando sua energia, algum dia atingirá um ponto limite do qual começará a retroceder até que a entropia conduza-o novamente para um estado de caos indiferenciado e compactado em uma pequena "bola"; da mesma forma a vida na Terra - talvez muito antes de que o universo venha a se contrair - atingirá um ápice a partir do qual tornar-se-á gradativamente mais simples; 2) o universo não constitui um sistema fechado mas um sistema em troca de energia com outro ( outro universo? Deus? ). Em literatura e ficção científica ambas idéias produziram inspiração para obras notáveis, podendo ser citadas A Máquina do Tempo de H. G. Wells (1991) e A Última Questão de Isaac Asimov (1990). Na primeira o narrador assiste a decadência e involução tanto da civilização, da espécie humana, quanto da vida como um todo; na segunda - em que a "última questão", formulada por incontáveis gerações, é se a Segunda Lei da Termodinâmica pode ou não ser revertida - o autor descreve um universo e uma humanidade que atinge tal grau de evolução que se funde em um todo capaz de reiniciar todo um novo cosmos físico (o seu mesmo ou outro universo?) com um programa cibernético que começa pelas palavras Faça-se a luz....
Apesar da produção literária e das especulações científicas e filosóficas, a prudência recomenda que seja resgatado o espírito cauteloso do empirismo inglês e o espírito bem menos cauteloso do criticismo kantiano. Tais discussões sobre entropia e neguentropia ultrapassam todos os dados empíricos passíveis de conhecimento. Conduzindo os conceitos de entropia e neguentropia além dos dados empíricos, a razão e a imaginação decolam para a estratosfera da antiga metafísica, seja aristotélica, seja tomista, seja leibnitziana. É impossível, pelo menos até o momento, que se saiba se o universo constitui um sistema fechado ou aberto, se a vida na Terra possui algum propósito além do darwiniano de sobrevivência. A discussão, para além dos dados atualmente produzidos pelos conhecimentos mais exatos e concretos, fornece material fascinante para a ficção científica, mas para a discussão filosófica conduz às antigas antinomias kantianas descritas na Crítica da Razão Pura, em que argumentos lógicos podem ser torcidos com igual validade das conclusões para direções opostas, de acordo com as motivações e vontade do enunciante (Kant,s.d.).
Hipercomplexidade
Retornando da estratosfera à Terra, ao território um pouco mais seguro das especulações de Edgar Morin, o conceito de máquinas simples e sistemas obedecendo a entropia e uma causalidade linear foi complementado pelo de máquinas e sistemas hipercomplexos. Foram definidas como hipercomplexos sistemas que possuem um número de componentes mensurável apenas por ordens de grandeza, ou que cujo número de componentes estabelece um número de relações que simplesmente não pode ser medido. Dois exemplos são dissecados por Morin: o cérebro humano e a sociedade humana.
O número de neurônios do cérebro, estimado em algo como dez elevado a dezesseis, é maior que o de estrelas em todo céu visível, seja ao olho seja ao mais potente dos telescópios construído. Considerando-se que a maior parte dos neurônios possui centenas ou milhares de sinapses, e que cada sinapse pode simultaneamente integrar mais de um circuito de funcionamento, caimos no cerne do sistema hipercomplexo: simplesmente não pode ser medido. Do ponto vista puramente biológico, embora também tenha de obedecê-las, o cérebro não pode ser estudado apenas pelas leis da biologia comum.
Do mesmo modo ocorre com a cidade humana. Enquanto, exceto por colônias de insetos e de algumas bactérias, outros animais agrupam-se em quantidades relativamente pequenas, a cidade humana atinge a casa de centenas de milhares ou milhões de seres. Tanto insetos como bactérias possuem comportamentos absolutamente rígidos e inatos para todos os componentes do sistema e não possuem qualquer diferenciação entre si, ou possuem apenas diferenças de castas, abrangendo milhares ou milhões de seres iguais em uma mesma casta ( única exceção feita às rainhas das colônias de insetos ). No caso dos mamíferos, manadas de elefantes, búfalos ou golfinhos podem ter centenas, talvez uns poucos milhares de seres, jamais dezenas de milhares ou milhões como a maioria dos grupamentos humanos. Considerando-se que cada ser humano faz parte de uma teia de centenas e até milhares de relações sociais dos mais variados graus e durações ao longo de sua vida, completa-se a analogia da sociedade humana com o cérebro e os sistemas hipercomplexos.
O número imensurável de componentes e de relações por eles estabelecidas faz com que a questão da entropia seja abordada de modo diverso no caso dos sistemas hipercomplexos. A diferença quantitativa hegelianamente estabelece uma diferença qualitativa. Do mesmo modo que nas máquinas simples, cada componente tanto possui uma taxa intrínseca de desgaste e falha, quanto uma taxa de falha na comunicação com outros componentes. Podemos designar tais taxas, que em realidade podem ser consideradas como erro do sistema, de ruído de fundo. Sistemas que possuem o número de componentes e relações apenas estimáveis na ordem de grandeza de mais de uma dezena de zeros ( a estimativa é arbitrária e desconhecida de quando um sistema pularia de simples ou complexo a hipercomplexo ), necessariamente produzem muito erro e o produzem todo o tempo. Isto é, possuem um ruído de fundo permanente, donde esta designação. Apenas por uma questão de probabilidade, além de produzir o ruído, a tendência para a desorganização e parada de funcionamento - o sucesso da entropia - deveria ser proporcional ao número de componentes, por maior que sejam os meios de regulação e controle. Como o que ocorre é justamente o oposto, deduz-se que os sistemas hipercomplexos trabalham com o erro, apesar do erro e a partir do erro.
Para o sistema hipercomplexo o erro deixou de significar apenas mau funcionamento e eventual incapacidade para produzir trabalho. O sistema teve de aprender a conviver com o erro e eventualmente em seu desenvolvimento crescer a partir do reaproveitamento do erro. Isto significa afirmar tanto que o sistema hipercomplexo deve tolerar considerável taxa de entropia, de ruído de fundo, quanto que de algum modo só pode tornar-se hipercomplexo na medida em que o próprio erro deixou de significar apenas algo deletério para tornar-se a fonte a partir da qual o próprio sistema pode reordenar-se e redirecionar-se. Isto é a partir da checagem do erro em relação ao sistema original, embora a maior parte do erro seja realmente nociva, uma pequena fração do erro pode ser aproveitada para modificar o sistema, produzindo sua reordenação.
Conclui-se que o sistema hipercomplexo de algum modo em seu desenvolvimento começou a utilizar as conseqüências da entropia a seu favor, de modo que sua evolução e sua adaptação a novas circustâncias não mais dependem apenas de sistemas que lhe são externos: passa a crescer e adaptar-se a novas circustâncias a partir de si mesmo. Este fenômeno, também denominado autopoiese, tornou-se o foco de algumas reflexões de Maturana (1997). Uma das conseqüências da autopoiese seria a constante busca do sistema hipercomplexo de novas circunstâncias, de novos ambientes aos quais possa readaptar-se. Ou quando inexistem tais ambientes, a reordenação do meio em um novo ambiente, fator essencial para a compreensão do nascimento de algo como a cultura humana.
Para mencionar apenas um exemplo em termos de teoria da evolução, os conceitos aqui expressos implicam que a comprovada evolução segundo os moldes darwinianos pode estar sendo completada por mecanismos que apenas poderiam ser justificados a a partir de um neo-lamarckismo. Neste caso a evolução humana não ocorreu apenas por mutações ao acaso, nocivas ou neutras em sua esmagadora maioria e apenas muito raramente úteis para a melhor sobrevivência da espécie, evolução por mutações e seleção natural originados apenas por mudanças no meio ambiente, mas por meio de algumas formas de mudança internas aos próprios organismos individual e social. Tudo indica a existência de algumas formas ainda desconhecidas de produção de mudanças. O dado notável de que os homídeos não possuem mais do que a aparentemente insignificante idade em termos biológicos de três milhões de anos e que o homo sapiens possui a idade ultrajantemente ridícula de cem mil anos na Terra ( sem contar com o fato absurdo que a história escrita - e mal-escrita - e a cidade não possuem mais que cinco ou seis mil anos ) talvez indique na direção de uma teoria neo-lamarckista em que mudanças evolutivas e cumulativas sejam produzidas a partir da própria espécie, ocorrendo em uma freqüência cada vez maior.
Causalidade Natural e Causalidade Humana
Apesar de apenas esboçado por Morin, outro conceito essencial para a compreensão da hipercomplexidade é o de causalidade. Os sistemas e máquinas simples e complexas trabalham a partir de uma causalidade linear, isto é, uma seqüência unidirecional de causas conduzindo a efeitos, causas que quando executadas de forma competente necessariamente produzem determinado efeito. Neste tipo de seqüência linear e unidirecional não há possibilidade de variação, todo erro é necessariamente deletério, a causa funciona em um mecanismo de tudo ou nada. As máquinas hipercomplexas, devido ao seu número praticamente infinito de componentes e relações mantidas entre eles, funcionam por taxas de probabilidade, sendo que uma taxa de indeterminação e de erro é sempre necessária. Por outro lado, o erro não significa sempre algo deletério, mas como foi explicado antes, o ruído de fundo constitui a possibilidade de re-programação e auto-programação do sistema. Há espaço para o indeterminado, para o aleatório, para o acaso, em última instância, para a liberdade. Sem dúvida, é curioso como dois séculos antes, em sua Crítica da Razão Prática, Kant (1984) defendia sua hipótese de que além da causalidade natural, unidirecional, deveria existir também uma causalidade múltipla, que denominou causalidade pela liberdade, e que apenas esta última justificaria o homem.
Em suma, o sistema não deve produzir tanto erro que se auto-destrua, nem ser tão rígido que volte a funcionar unidirecionalmente, mas do erro em uma taxa que não comprometa o sistema como um todo surge a complexificação e por meio desta a possibilidade de mudança qualitativa. A hipercomplexidade implica em que a causalidade não pode ser mais linear, mas múltipla; um mesmo efeito deve ser produzido por um número variável de causas concomitantes, uma causa pode influir em um número igualmente vasto de efeitos diferentes. Morin evidentemente traça um paralelo entre a causalidade múltipla e o pouco que se sabe de neurofisiologia do córtex cerebral humano. Aparentemente um mesmo problema conduz o córtex cerebral a trabalhar em paralelo com várias colunas de neurônios, todas teorias localizacionistas do funcionamento cerebral tiveram de ser abandonadas em função de teorias de funcionamento cerebral simultâneo ou múltiplo, nas quais o produto final surge como resultado do funcionamento global e integrado de um todo que é muito mais amplo que a soma das partes.
Embora Morin não cite diretamente Kant, a dualidade entre uma causalidade linear e outra múltipla, remete à distinção kantiana entre causalidade natural e causalidade pela liberdade. Entretanto, na obra de ambos autores o problema é apenas esboçado: tanto em Morin, que deixa bastante a desejar quando defende sua teoria da causalidade, quanto dois séculos antes em Kant (1984), que também jamais explicou de forma clara e objetiva como seria uma causalidade pela liberdade. De qualquer modo, há a percepção de que simples lei de causa e efeito, que não deixa de ser a mera lei do mais forte - uma causa mais forte predomina sobre uma mais fraca e produzirá um efeito necessário e maior - torna-se incapaz para a compreensão do ser humano social e individualmente, e que para explicá-lo em sua riqueza e criatividade é também necessário que se justifique por uma causalidade que permita o aleatório, o acaso, em última instância a criatividade e a liberdade, e não apenas a necessidade da lei mais usual e inexorável da natureza.
Hipercomplexidade e as Várias Formas da Consciência
Torna-se perceptível que o sistema de Morin, aqui apenas esboçado por meio de três conceitos - entropia, hipercomplexidade e causalidade -, possui subjacente uma antropologia, uma ética, uma epistemologia e mesmo uma ontologia que poderiam ser mais explicitadas. Não pertence ao cunho e extensão do atual trabalho realizar tais análises filosóficas. Mais pertinente é analisar as possíveis conseqüências e aplicações de uma epistemologia da hipercomplexidade e de uma ética da causalidade pela liberdade para a Filsofia da Educação.
Educar não se reduz a transmissão de conhecimento. Tal suposição confunde conhecimento e informação. O dado puro ou restrito a um contexto específico - a informação - as atuais máquinas acumulam e transmitem de forma muito mais ampla, rápida e eficiente que o ser humano. Mas conhecimento significa integração de determinada informação em um contexto mais abrangente e em confronto teórico-prático com outros contextos. A produção de conhecimento exige a relação afetiva entre o professor e o conteúdo do que ensina, relação que não se trata de um simples romantismo, mas do modo como o aluno capta a possibilidade de integração, unificação e disposição do conhecimento de forma mais prazerosa, sintética e capaz de responder aos desequilíbrios provocados pela instabilidade permanente dos sistemas cognitivos e das demandas sociais. Do mesmo modo, educar não constitui a transmissão de somente um paradigma, mas paralelamente de vários paradigmas, tanto para que diferentes desafios possam ser respondidos por diferentes sistemas de busca de soluções, quanto para que haja o confronto entre diferentes modelos.
Para Morin a consciência ( na acepção do inglês consciousness: o todo momentâneo perceptual da vida psíquica ) nada mais é que o produto e forma final de organização do cérebro e da sociedade como sistemas hipercomplexos. A consciência:
é dotada de qualidades originais e de uma relativa autonomia; ela alimenta, por sua vez, os elementos que a nutrem , intervêm sobre aptidões e actividades que a fazem viver, para as estimular, para as desenvolver, ,e e, desta forma, trabalha para seu auto-desenvolvimento. Nesse sentido torna-se auto-organizadora e aspira a constiuir-se em epicentro do cérebro o qual, como se viu, já é o epicentro do universo antropológico" (Morin, s.d, pg. 135)
Cada indivíduo ( etimologicamente o não-divisível ) possui sua própria consciência, que re-flete sobre si mesma, produzindo autoconsciência, torna-se capaz de julgar a si própria, produzindo a consciência moral (na acepção do inglês conscience) da qual decorre a capacidade de escolha: livre-arbítrio. Socialmente tanto há uma consciência da inserção do indivíduo na coletividade quanto da representação desta qualidade, bem como de uma ou mais formas de consciência grupal, onde talvez possamos agrupar hipóteses que propõe desde a existência de arquétipos jungianos, até a noção de objetivo e missão de uma coletividade.
Por ser demais especulativa ou considerada ideologicamente perigosa, a defesa da hipótese da psicologia analítica sobre a existência de arquétipos deve suscitar certa cautela. Contudo, a inserção social e sua representação constituem o fundamento para que ocorra o reconhecimento do indivíduo como função plena de direitos e deveres, em igualdade com seus pares, isto é, para que nasça e se desenvolva o conceito de cidadania. Indo além da direção linear da causalidade natural, apenas a consciência humana pode reconhecer a de outrem como sendo portadora de características e funções formalmente iguais a sua, ao mesmo tempo que reconhece no outro diferenças de conteúdo, desejos e aptidões que lhe são diversos - apesar de que na prática tal reconhecimento ocorra muito mais raramente do que gostaríamos de afirmar - e partindo de tal reconhecimento estabelecer o primado da ética e não da lei natural do mais forte.
Se as várias formas de consciência existem como produto de sistemas hipercomplexos, e de formas mais sofisticadas de causalidade, educar revela-se como um reforço da hipercomplexidade. O ensino não constitui uma simples transmissão de conhecimento, mas sim em conscientização, em criar as possibilidades para a sua produção ou construção (Freire, 1997). Tal criação necessariamente implica no desenvolvimento do conceito de cidadania e o retroalimenta.
Linguagem e Palavra
De modo pragmático trata-se de como evocar, por meio da educação, o potencial para a hipercomplexidade. Para tal, além da relação afetiva mencionada, além da linguagem verbal, a leitura e a escrita tornam-se essenciais. Mas primeiro temos de fundamentar a importância da linguagem verbal.
Dentre todas linguagens humanas estudadas tanto pela ontologia ou pela filosofia da arte (Heidegger, 1984,1990) ou pela antropologia filosófica ou cultural (Cassirer, s.d.), destaca-se prioritariamente a linguagem verbal. Enveredar pelo caminho de uma fundamentação ontológica, tal como foi proposta pela analítica existencial heideggeriana, associada a uma fundamentação ontogênica, que pode ser calcada desde pensadores neo-kantianos até autores estruturalistas ou informações mais recentes da antropologia física e da etnologia, sobre a prioridade da linguagem verbal sobre as demais linguagens, constitui uma tarefa difícil mas extremamente sedutora. Porém tal caminho nos conduziria além de nossa proposta atual. Preferimos seguir a trilha de uma fundamentação mais objetiva e próxima, calcada na proposta de uma Antropologia Filosófica nos moldes de Morin e Maturana, bem como em algumas concepções de Chomsky sobre linguagem.
Podemos genericamente definir a linguagem como uma produção de sentido. Nessa definição estão incluídas todas as linguagens dos seres vivos. E a vida pode ser definida também como um sistema de troca permanente de comunicação entre estruturas. Como assinala Morin, os seres vivos alimentam-se não apenas fisicamente, mas de informação, tanto entre outros seres vivos, quanto com o meio ambiente ( bem como a própria nutrição de cada ser realiza-se a partir de sua informação ). Considerando a definição da linguagem como produção de sentido podemos até mesmo afirmar que a mais antiga de todas linguagens é a do código genético, a partir do qual toda vida na Terra é criada ( RNA/DNA ) e que pode ser didaticamente representado por uma seqüência de letras.
Contudo, as linguagens dos demais seres vivos, como o canto de uma espécie determinada de pássaro no acasalamento, possuem e produzem sentido mas, mesmo quando possuem alguma possibilidade de recombinação e modulação, como nos pássaros mais admirados pelos seres humanos por seu canto ou capacidade de imitação, constituem linguagens na verdade bastante rígidas de cada espécie em que - e apenas para um reduzido número de espécies - a variabilidade permissível ao indivíduo restringe-se a poucas séries de combinações. Uma maior modificação da linguagem nos demais seres vivos encontra-se na mesma descrição do defeito nas máquinas simples, sempre uma falha na comunicação que entra na categoria de erro.
A linguagem humana, tanto verbal como em todas formas de arte não-verbais, ultrapassa a fronteira do simples em direção ao hipercomplexo: constitui um sistema de infinitas combinações e não somente mero veículo de transmissão de informações, tanto reflete o real quanto por si mesma cria outras realidades, especificamente humanas. No ser humano a linguagem não apenas produz sentido como reprodução das percepções do meio ambiente, mas produz novos sentidos. A criação desses novos sentidos ocorre porque o domínio da linguagem, tal como estudado por Maturana (1997), é por si mesmo autopoiético, isto é existe como uma forma de organismo que se auto-reproduz de forma não-rígida e evolui em seu próprio grau independente de complexificação e criação de novas formas.
Sobre o surgimento da linguagem verbal duas hipóteses filogênicas podem ser consideradas. A primeira de que no ser humano haja desenvolvido no processo de antropogênese uma capacidade simbólica, da qual a linguagem verbal tenha resultado como uma das últimas aquisições, até mesmo como a mais tardia dentre todas. A segunda hipótese, talvez mais pertinente, de que a linguagem verbal, surgindo como um sistema que de um número finito de elementos e regras universais que, segundo Chomsky, por sua vez produz um número infinito de combinações, tenha sido ela mesma o fator que, junto com o nascimento da possibilidade de transformação das imagens psíquicas em infinitas novas combinações - isto é o nascimento da imaginação - permitiu que a plasticidade invadisse ou criasse todas demais formas de manifestação humana. Dito de outro modo, o salto dado da percepção à representação, que tornou o ser humano a criatura dotada de maior capacidade de memória na face da Terra, teria sido quase simultâneo ao nascimento da infinita possibilidade de recombinação das representações, isto é, ao nascimento da imaginação, e que tanto a memória quanto a imaginação sejam fruto da linguagem verbal e não ao contrário. Em suma, dentre todas linguagens em que se encontra imerso o ser humano, destaca-se a possibilidade de que a verbal, com seu infinito jogo de recombinações e criações, a partir de um sistema finito de elementos infinitamente recombináveis, tenha sido aquela que, segundo Morin, possibilitou e retroalimentou a riqueza da afetividade e da sociedade humanas e, por sua vez, possa ter sido fulcro de todas demais formas de linguagem não verbal. Por meio da palavra o jogo de autopoiese tornou-se mais rico e universal que o das demais linguagens a seu redor, tanto dos demais seres vivos quanto das inúmeras outras formas não verbais de linguagem humana.
Podemos aventurar uma provisória exemplificação. Poucos seres humanos podem universalizar-se como produtores (ou emissores) de arte. Em sua maioria somos artistas de medíocre talento, na melhor das hipótese se é artista em apenas uma ou duas modalidades artísticas ou então, tanto pela sensibilidade como educação, podemos expandir nossos horizontes como apreciadores (ou receptores) em um número maior de formas de manifestação artística. Mesmo a genialidade de um Pablo Picasso, capaz de metamorfosear-se por décadas através dos mais diferentes estilos e escolas, utilizar meios diversos como a pintura, escultura, cerâmica ou pano, limitou-o às artes plásticas. Apesar de que tais argumentos não diminuem o lugar essencial da estética na educação, por necessariamente pertencer toda arte ao domínio do hipercomplexo intrínseco à natureza do ser humano, o limite concreto da educação artística é bastante palpável na prática. Mesmo que grandes artistas não possam ser produzidos aos montes, atrofiar o potencial artístico ou não fornecer subsídios para a ampliação da sensibilidade estética constitui a produção de monstruosidades, na acepção aristotélica de que monstro é a forma que não atinge a plenitude ou tem a atualização de sua potencialidade obstruída.
Mas do ponto de vista prático o domínio do verbal é o mais universal dentre todos da linguagem. Em suma, na grande maioria das artes somos apenas receptores ou produtores medíocres de algumas formas de expressão; como falantes, com um mínimo de aprendizagem, inserimo-nos no mais universal e passível de diferentes recombinações e novas combinações dentre todos os domínios da linguagem: o da linguagem verbal. Mesmo que as primeiras palavras escutadas não possam ter decodificado seu significado, desde o nascimento - e segundo muitos psicólogos e psicanalistas bem antes do próprio nascimento - estamos imersos no universo da palavra que, ao contrário do universo do som, possui uma intencionalidade transmitida por meio de um sistema articulado e combinatório de elementos finitos, a qual desde o início a criança capta e procura aos poucos desvendar e reproduzir. As várias áreas cerebrais, cujo funcionamento e localização exatos ainda são desconhecidos, bem como a extrordinária complexidade fisiológica e riqueza de produção de sons da laringe humana, demonstram que dentre todas formas de produção de sentido a linguagem verbal é a de que melhor dispõe a criança. Também neste caso o desenvolvimento infantil apenas seguiria a lei de que a ontogênese recapitula a filogênese.
Podemos imaginar ou até mesmo conhecer alguém que não goste de qualquer tipo de música. É-nos impensável alguém, exceto portador de grave comprometimento cerebral, que não utilize qualquer comunicação verbal, mesmo por meio da linguagem de sinais manuais (que possui todas características da linguagem verbal: Pinker, 1995), por exemplo, e além disso não obtenha também prazer tanto na linguagem como forma de comunicação e meio para obter satisfações, quanto na linguagem verbal como forma de satisfação intrínseca em seu próprio uso. O prazer na sonoridade conjugando-a com o sentido - seja poesia, canção ou ambas -, no jogo de palavras, na piada de duplo sentido, nos absurdos lógicos entre a palavra em sua imagem usualmente evocada e outra sem nexo aparente; o prazer em receber ou produzir tais efeitos, constituem o exemplo mais imediato de como o verbal ultrapassa as fronteiras da denotação e conotação, para universalizar-se como jogo lúdico e autopoiético. Indo mais além, a manutenção e ampliação da linguagem verbal constituem a manutenção e ampliação da hipercomplexidade individual e social humanas. Tal como foi antes afirmado, hipercomplexidade sem a qual todas acepções do termo consciência perdem sentido.
Palavra Escrita: Nova Hipercomplexidade
A escrita constitui desenvolvimento recente da linguagem humana, o mais eficiente dentre os seus sistemas - o alfabeto - não possui mais que três mil anos. Contudo, a escrita não pode ser compreendida apenas como um sistema registro permanente da linguagem verbal: foi muito além. A possibilidade de registro permanente multiplicou ao infinito o que, até entào, fora transmitido de forma oral: mitos de origem, invocações ao sagrado, feitos épicos de heróis e ancestrais, técnicas de todos tipos, inventários de bens e armas, etc. Através da palavra escrita foram ultrapassados todos os limites de tempo e espaço, o texto pode ser levado com pouca alteração à grandes distâncias e inúmeras gerações, simultaneamente formando variantes, comunicando culturas diversas, misturando saberes. A idéia contemporânea de hipertexto pela informática só foi possível como desenvolvimento da idéia bem mais antiga da literatura como um labirinto sem fim: a borgiana Biblioteca de Babel. Todas as literaturas, todos os saberes escritos, não constituem compartimentos estanques, mas fluem permanentemente como gigantesca teia. Tendo surgido inicialmente apenas como sistema de registro permanente da linguagem oral, mas uma forma de registro muito mais prática do que a reprodução por meio de imagens visuais - pintura, escultura - e fundamentada, até certo ponto, pelos mesmos princípios que regem o verbal, a palavra escrita acabou por constituir-se em outro sistema hipercomplexo.
A função da palavra escrita ultrapassa sua utilidade como meio para transmissão de conteúdos. Abstraídos os contéudos, a própria natureza formal da escrita, em sua acepção abstrata, deve ser considerada. Pode-se deduzir a aplicação de todas idéias anteriormente expostas sobre causalidade e consciência quando aplicadas ao mais recente sistema hipercomplexo que constitui a escrita. Sem dúvida que, quanto aos conteúdos, todos benefícios caracterizam a escrita como potencialmente catalizadora de uma mais ampla consciência em todas suas acepções: instrumento capaz de ampliar a visão de mundo, de alargar o conhecimento da história e da constituição de uma sociedade, de possibilitar o estudo da riqueza de relações dentro de uma mesma cultura e dela com outras; além, é claro, de meio pelo qual torna-se infinita a possibilidade em expressar idéias e sentimentos para um número também infinito de indivíduos.
Mas o sistema da escrita pode ser visto como mais que um instrumento ou meio de comunicação. A escrita, em sua hipercomplexidade formal, só tornou-se possível por reordenar e utilizar aptidões aparentemente subutilizadas da linguagem. Quanto à causalidade podemos deduzir que a palavra escrita, como sistema hipercomplexo por si mesmo, ampliou a multiplicidade. Quanto à consciência, o novo sistema potencialmente pode torná-la ainda mais abrangente. Retomamos o cuidado do início, onde afirmamos que a leitura e escrita constituem condições necessárias, porém não suficientes, para o desenvolvimento da consciência em toda suas acepções. São facilmente fornecidos exemplos de pessoas analfabetas e sábias, dotadas de profundos sentimentos de coletividade e cidadania. Resta questionar se no mundo contemporâneo tais exemplos não seriam muito mais exceção que regra, bem como evocadores da nostalgia romântica de uma “idade da inocência” que na prática jamais existiu.
Todos os dados parecem corroborar o fato que o desenvolvimento da civilização só tornou-se possível simultaneamente com o nascimento da escrita. As culturas urbanas e históricas conhecidas derivam de um processo que não possui mais que cinco ou seis mil anos, ao passo que a linguagem verbal possivelmente já estaria constituída em seus princípios básicos há cem mil anos, desenvolvendo-se entre os últimos três, talvez até sete, milhões de anos (Pinker, 1995). A conjunção entre o nascimento da cidade e da história serve de alerta tanto para o funcionamento da escrita como técnica e exercício de poder, quanto do possível aparecimento de um novo sistema hipercomplexo.
Escrita e poder - ler e escrever era privilégio de poucos, e as primeiras culturas conhecidas não foram igualitárias. Tal fato é indissociável ao fato de que todas culturas e épocas em que o surgimento e exercício da cidadania e liberdade foram possíveis - mesmo quando restritos a classes sociais privilegiadas, como em Atenas ou na Roma republicana - ou ocorreram simultâneos ao letramento, ou tornaram por difundi-lo o máximo possível (Chartier, 1996). Já o exemplo contrário é facilmente perceptível, bem como o dado acessório de que quando um sistema coercitivo é implantado sobre uma sociedade ou grupo já letrado, uma vez que o processo é irreversível em poucas gerações, a coerção dá-se por proibição do direito aos textos, ou mesmo de sua destruição, o que representa tanto a impossibilidade de acesso a conteúdos, quanto também de acesso ao exercício da hipercomplexidade em si mesma.
Conclusão
Mesmo tendo deixado a parte a procura de uma fundamentação ontológica ou ontogênica sobre o polêmico tema da prioridade da linguagem verbal sobre as demais linguagens, o desenvolvimento de tal tema a partir de uma Antropologia Filosófica calcada na hipercomplexidade permitiu efetivar a justificativa conceitual da proposta de que não apenas a alfabetização - cuja defesa é bem mais fácil - mas escrita e leitura constituem atos que em si mesmos, não apenas pela informação ou prazer que veiculam, são organizadores do pensamento e de valores, construtores de consciência individual, social e de cidadania.
De igual modo, trata-se de propor a hipótese de que programas de incentivo à leitura, a parte concepções ideológicas porventura embutidas em suas diretrizes ou formas de execução, sempre ultrapassam os limites inicialmente impostos. A defesa de que os atos da leitura e da escrita sejam em si mesmos portadores de hipercomplexidade e autopoiese, de consciência e liberdade, é a defesa de que, gostos e utilidades à parte, o acesso a leitura e escrita seja o maior de todos os bens culturais. Ainda que portadores de uma idéia preconceituosa do que seria “de bom tom” como leitura, programas de incentivo à leitura terminam, de algum modo, por atingir - dentro de pequenos limites face aos parcos recursos disponíveis e ao lastimável estado da educação - a concepção divulgada pela ALB (1999):
Ao invés de criar programas para convencer a ler determinados livros, para difundir o “prazer”de ler, é fundamental que se garanta a todos o acesso aos bens culturais, o que se faz não apenas alfabetizando a população, garantido escolas e bibliotecas públicas de qualidade, mas também enfrentando as violentas desigualdades sociais brasileiras. (...)
Logo, se educar possui como meta prioritária não uma simples transmissão de conhecimento, mas sim em conscientização, em criar as possibilidades para a sua produção ou construção (Freire, 1997), o desenvolvimento de toda potencialidade verbal pode ser proposto como fulcro de todo ensino. Se deduzirmos que tal potencial só pode plenamente desenvolver-se por meio da linguagem verbal acrescida da leitura e da escrita, em realidade nada mais fizemos que justificar por outros meios a obra do educador brasileiro.
Defender a idéia de que a linguagem verbal, a alfabetização e o desenvolvimento da leitura e da escrita sejam essenciais ao desenvolvimento humano, não somente pela qualidade de veículo de informação, que restringiria a educação em adestramento para o mercado de trabalho, mas pelas qualidades intrínsecas de seus próprios processos, desde o pólo biológico até a formação do pólo intelectivo e cognitivo, significa propor um debate se o fulcro da educação, não apenas fundamental mas em todos níveis, deveria centra-se sempre em tais processos.
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Anchyses Jobim Lopes, Médico (UFRJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Doutor em
Filosofia (UFRJ), Psicanalista e Membro Efetivo do Circulo Brasileiro de
Psicanálise - Seção RJ
Publicado em: Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, n° 37, Junho de 2001 (também disponível através dos Anais do XII Congresso de Leitura do Brasil, CD-ROM, Campinas, Associação de Leitura do Brasil/UNICAMP, 2000)
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