ANCHYSES JOBIM LOPES *  







Uma Ilha e como Tentar Sair Dela

Estudo sobre o conto do escritor argentino Bioy-Casares e a literatura como sublimação da pulsão de morte.

Publicado na Revista - Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise, nº 2, Rio de Janeiro 95/96.



Sinopse: O autor apresenta o problema do conceito de sublimação, proposto e nunca claramente explicado na obra de Sigmund Freud. A partir de um resumo da obra de ficção fantástica do escritor argentino Bioy-Casares - "A invenção de Morel" - discute-se o tema do livro como metáfora da obra de arte. A experiência estética é descrita enquanto movimento circular que infinitamente se repete. O movimento circular repetido é comparado com a postulação freudiana da Pulsão de Morte, e a obra de arte proposta como modo de sublimar a "compulsão à repetição" enquanto manifestação originária desta pulsão.

Summary: The author discusses the problem arising from the idea of sublimation, never fully explained in Freud?s Works. From na abstract of the fantastic novel bu the argentian vriter Bioy-Casares - " The Invention of Morel" - the book?s theme is taken as a metaphor describing the work of art. The aesthetical experience is outlined as a circular movement that endlessly repeats itself. This kind of omotion is compared with the freudian postulate of a Death Instinct and its consequent "compulsion to repeat". The author proposes the work of art as a ind of sublimation whose origin comes from this compulsion.

O conceito de sublimação sempre possuiu um papel fundamental para Freud. Até mesmo um papel mais importante em seu sistema pessoal de crenças do que nos escritos que nos legou. A dessexualização da libido e a domesticação da agressividade, metamorfoseadas em direção à criar ciência e arte, constituiriam o dom de transformar algo que em sua plenitude é socialmente inaceitável naquilo que seria o mais valioso legado às gerações futuras. Entretanto, apesar de intimante conectado e tão importante quanto a conceituação do superego, que também transforma o mais antigo e perigoso no mais elevado e sofisticado do ser humano - em realidade naquilo que o transforma em verdadeiramente humano - ao contrário do de superego, o conceito de sublimação jamais foi clara e intimamente descrito por Freud. A questão tornou-se ainda mais enigmática quando da conceituação da pulsão de morte: de que modo, além da sexualidade e da agressividade, manifestações mais diretas do Tânatos - tal a compulsão à repetição - seriam sublimáveis? Tal é a questão condutora deste texto, que terá por método a análise de um texto literário tomado por metáfora sobre a criação da obra de arte.

Em "A invenção de Morel", pequeno romance fantástico do escritor argentino Bioy-Casares (grande amigo e colaborador de Jorge Luís Borges) datado de mais de meio século, um fugitivo - jamais nomeado e qual crime também nunca é especificado, dando a entender tratar-se, talvez, de um crime político - refugia-se em uma ilha deserta do Pacífico. Ilha que é apresentada como um refúgio absolutamente seguro. Nem exploradores ou piratas se atrevem visitá-la. Além da distância, a ilha é tida como possuidora de uma peste mortal e completamente desconhecida, talvez alguma espécie de maldição. O último navio que nela aportou foi depois encontrado a deriva, com todos passageiros e tripulação mortos.

O fugitivo descobre que na ilha existem três construções: uma capela, um edifício maior que mais parece um hotel de veraneio, mas inexplicavelmente é designado com "museu" e uma piscina. Para sua surpresa a ilha não era tão deserta como aparentava. Subitamente aparece um grupo de veranistas e seus criados, vindos não se sabe de onde. E então tudo muda. As construções abandonadas há mais de uma década, tornam-se novas, a piscina limpa, os jardins cuidados. Tão misteriosamente como surgiram, depois de uma semana todos os estranhos desaparecem e todo resto decai. Mas voltam algumas semanas depois. Sempre vestindo as mesmas roupas estranhamente antiquadas. Repetem os mesmo hábitos, jogos, conversas e mergulhos. E novamente desaparecem, iniciando um circulo sem começo ou fim. Aos poucos o leitor e a personagem vão completando o quebra-cabeça. Morel, um inventor muito rico e o anfitrião dos veranistas, no início do século, inventara máquinas capazes de reproduzir simultaneamente todas percepções. A forças das marés eternamente põe em funcionamento de depois faz cessar o mecanismo. Com isto Morel há muitos anos criara um moto perpétuo sempre projetando - não apenas visualmente, mas com som, tato, cheiro - a "semana perfeita" de férias inesquecíveis para a qual convidara seus amigos e sua amada. As projeções são tão perfeitas e reais que, quando em funcionamento, substituem todo real. O fugitivo racionalmente sabe que a piscina está imunda, com sapos e plantas, mas quando inicia-se a semana perfeita a água está límpida, clara, pronta para mergulhar. A força da percepção sobrepuja toda convicção racional.

Obviamente os veranistas executam todas suas ações como se o fugitivo jamais existisse. O que não impede que se apaixone por aquela que também fora à amada de Morel. Então completa-se o enigma, o que ocorrera anos atrás, depois que os veranistas partiram da ilha. Ninguém completou a viagem de retorno.

A invenção de Morel possuía apenas um pequeno defeito: o processo de gravação da realidade era mortal. Uma vez copiado o original imediatamente começava apresentar uma doença em que a pele tornava-se insensível, todos pelos do corpo caiam, surgia uma progressiva cegueira - uma mistura de lepra e efeitos de radioatividade. Morel conhecia muito bem sua criação; por isto decidira eternizar-se cercado por seus amigos e pela mulher que amava e o rejeitara. Ficamos na dúvida se foi uma terrível vingança ou se o inventor realmente acreditava que a alma dos modelos originais transmigraria para as cópias, tornando todos imortais, embora destinados a sempre repetirem o mesmo. Pelo menos enquanto funcionassem os mecanismos que criavam as projeções. As máquinas que deveriam durar séculos. Dos veranistas originais, há muitos anos apenas restara o navio encontrado repleto de cadáveres.

O fugitivo desvenda o funcionamento e os efeitos da invenção de Morel. Mas movido por sua paixão e pelo desejo de eternidade, resolve incorporar-se à "semana perfeita". Faz-se gravar em perfeita sincronicidade com a gravação dos veranistas originais, dentro da espécie de disco de onde as máquinas projetam. Também torna-se imortal e inseparável de sua amada. Ao menos enquanto as máquinas funcionarem ou, apesar de muito remota, a ilha algum dia for invadida por bárbaros motivados pela expansão demográfica. Tais são as conclusões escritas pelo fugitivo em seu diário, no qual também relata os sintomas de sua doença, enquanto aguarda o momento em que acredita que sua alma transmigrará para a imagem gravada.

Uma das interpretações possíveis, senão a mais plausível, é de ser a "Invenção de Morel" uma crítica e uma sátira a obra de arte e sua criação. A arte, sob qualquer forma, eterniza algo de seu criador, seja ele o anônimo vitralista medieval, seja o autor contemporâneo avidamente buscando eternizar-se através da permanência de seu nome às gerações futuras. Racionalmente sabemos que a obra é uma idealização, platônica ou baudelariana - do sublime ao grotesco - jamais encontrável no mundo real. Mesmo o realismo é a ilusão que se possa duplicar por algum meio exclusivo - pela palavra, por exemplo - todo real. Neste caso Morel foi o mais perfeito de todos realistas: utilizou simultaneamente todos meios - palavra, imagem, tato, som, cheiro, etc. - criando uma arte global jamais vista desde a Idade Média, ou conseguida pelos mais avangardistas pós-modernos de bienal. Mas, fornecendo outro exemplo, se racionalmente sabemos que o poema não é a linguagem da comunicação prática cotidiana, quando o lemos ele é mais real que a realidade. Através de palavra e som recriamos imagem e sentimento. E se o poema realmente fizer seu efeito por um momento esquecemos o mundo do dia a dia e suas preocupações. Ou podemos ser tomados por um êxtase místico ou uma indignação revolucionária. Mas crua e objetivamente é só uma maquininha de produzir efeitos especiais.

Como é montada esta maquininha? Por quaisquer veículos materiais que desencadeiem nossa percepção e imaginação. Substrato comum a qualquer forma de arte é essencialmente o de tempo. Para produzir em nós suas projeções qualquer veículo necessita recriar uma dinâmica própria de tempo. Um tempo que não é o objetivo e social do calendário, mas também não o infinito fluir da duração real bergsoniana. Um tempo que também não é a atemporalidade do inconsciente, .nem a contração ou distensão de nossas vivências em função da satisfação ou insatisfação de acordo com o princípio de prazer, e tampouco a mensuração objetiva da consciência. Mas um tempo que é em verdade um pequeno bloco de tempo retirado e mantido isolado de outros modos de vivenciar o tempo. O veículo material - tal as máquinas inventadas por Morel - não funciona se despojado de sua dinâmica de desenvolvimento temporal. Mas o meio material pouco mais é que uma técnica determinada, através da qual um tempo que racionalmente é apenas uma ilusão, torna-se uma vivência mais objetiva que o mundo concreto e objetivo. E o que é mais grave, se a maquininha realmente produzir seu efeito, mesmo tendo cessado de funcionar, o mundo concreto e objetivo passará a ser integrado e percebido de um modo ligeiramente diferente. Tomemos por exemplo um poema curto. Ele cria uma breve ilusão de sons, imagens, lembranças e afetos. Não sob a forma de um impacto único, mas de percepções e estados psicológicos que surgem, crescem e acabam. Criou em nós algo em movimento. E o relemos, e novamente relemos, e vamos imperceptivelmente adquirindo uma forma de dependência: senão toxicofílica, poemofílica. Mas podemos ser também, e simultaneamente, musicofílicos, pinturofícos, teatrofílicos ou outras formas de dependência. E todo dependente tem sempre de retornar ao seu vício.

Ainda mais grave, e se não for apenas um poeminha curto mas, por exemplo, um grande livro de poeminhas curtos, ou um grande poemão épico. Após saboreá-lo mudamos nós ou o mundo que percebíamos é que estava errado? Se não é mais aceitável a crença de a linguagem - qualquer forma de linguagem - reproduza o real, e sim que crie ela própria sua realidade, também não é mais aceitável que nossos eus sejam passivos reprodutores do mundo que nos cerca. A obra modifica a integração de todo nosso existir em conjunto com o que nos cerca, o assim denominado mundo. Solipsisticamente descobrimos que parte deste mundo não existira antes de a termos visto pela primeira vez. E como a obra modifica também sua própria releitura futura, reler é sempre uma primeira vez.

Mas se a obra entra em nós, é possível que entremos nela. Podemos ser incorporados nela, tal o fugitivo na ilha de Morel? Seria cada leitura uma interpretação e uma forma de incorporação à obra? Sem dúvida que, de modo bem pragmático, foi esta a tentação não vencida por muitos copistas medievais. Qual autor obscuro que não desejaria deixar alguns versos para sempre inseridos na Odisséia ou em alguma peça de Sófocles? Os meios modernos de reprodução em massa tornaram impossível tal sonho. Mas a crítica não será ela, de modo bem mais sutil, um modo de buscar uma modificação permanente, quase incorporada à obra, para os futuros leitores? Levada ao pé da letra, a interpretação de "A Invenção de Morel" enquanto obra de arte conduz à condenação platônica dos poetas: falsificadores do real, produtores de uma cópia inferior. Ou então, em algum ponto, a obra de Bioy-Casares nos deixa a sensação de que algo está faltando em seu livro. A mesma sensação que temos na "República" de que a partir de sua ótica Platão está correto, mas simultaneamente está sendo injusto e até desumano. Mas não serve a resposta simplória de que a arte é necessária ou não se vive sem ela. Seria mera resposta fundamentada em convicção pessoal ou dogma: é por que tem de sê-lo. E dogma por dogma até hoje Platão é muito mais convincente.

Também não seria uma resposta suficiente a de que o livro de Bioy-Casares seria apenas a sátira de uma arte individualista e socialmente alienada. Apesar de que tal observação seria muito pertinente, todo artista e toda obra necessitam de algum grau de isolamento - ou de distanciamento-- para criar e ser preservada a criação. Basta que se chegue ao exagero de um museu em uma ilha deserta. Quanto ao inverso, é cansativo repetir todos argumentos de que o melhor engajamento político não salva uma obra ruim ou o contrário. Morel e sua invenção representam a contradição tão bem sintetizada pelo poeta Paulo Leminski:
"Existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores frutos do trabalho humano: eles sobrevivem ao autor, são uma vingança con tra a morte. Por outro lado só podem fazer isso por que são morte: suspensão do fluxo do tempo, pompas fúnebres, pirâmides do Egito".

Dificilmente poderíamos colocar de modo mais resumido a relação entre a arte e a morte. Podemos então perceber que a invenção de Morel aprofundou tal relação apenas em seu aspecto negativo, da obra de arte enquanto suspensão do fluxo do tempo - ou como preferimos, possuidora de uma dinâmica própria de tempo. Mas em que dimensão podemos encarar a obra como vingança contra a morte, uma maneira de se aproveitar à inexorabilidade da morte contra ela mesma. Qual o outro paradoxo, além do mencionado por Leminski, em que a arte ora pode ser um túmulo dotado de um movimento circular homogêneo - em realidade um não-movimento, uma inércia, a compulsão à repetição descrita por Freud - ora pode ampliar o horizonte humano em direção ao futuro - não um círculo como o do Eterno Retorno, mas uma espiral crescendo ao infinito?

Talvez não se trate exatamente de um paradoxo, mas de uma mesma seta que possa direcionar-se em sentidos opostos. Independentemente do preço de sua alma que o artista paga pela obra, a obra de arte só é universal e permanece se em um indivíduo ou sociedade produz uma metamorfose que amplie ainda mais a imaginação, o conhecimento e a possibilidade de reviver o passado. E, revitalizando este passado, através dele vivenciar, experimentar e criar novas formas e obras. Isto é, se a seta, após recuperar parte passado, se direciona através do presente ao futuro: abre e amplia horizontes, integra de modo mais amplo o eu e o mundo, necessariamente também ampliando a relação entre ambos. Deste modo à repetição não se dá uniformemente sobre o mesmo, mas sob a forma das ondas que surgem de uma pedra atirada no lago.

Se, ao contrário, a seta direcionar-se apenas a passado, moldará exclusivamente nele o presente. Tal é a invenção de Morel. Uma semana supostamente perfeita será imutavelmente repetida enquanto funcionarem as máquinas que a reproduzem. Na ilha de Morel estamos no reino do modelo fixo - platônico no sentido vulgar do termo - do qual toda modificação será erro ou decadência. Nesta ilha estamos sob o império direto da compulsão à repetição, reino do que violenta a criatividade da natureza humana, portanto no domínio do aético. Reino sem esperança ou salvação, pois foi criado pela crença de que o melhor jaz no passado e o melhor que pode ser feito é apenas cultuá-lo. Estamos sob o domínio do mito - não do mito enquanto inspiração e parte dos grandes arquétipos criadores do homem - mas do mito enquanto ritual, enquanto fonte de dogma e da irracionalidade.

A fronteira entre dogma e criação - ou, se quisermos, entre compulsão à repetição e sublimação - é bem mais tênue do que geralmente desejamos aceitar. Dogma estéril e criatividade estão lado a lado. Permanece o mistério do talento, do dom capaz de unir Eros e libido à compulsão à repetição de tal modo que transforme morte em criação. Quem sabe até do mistério de criar a partir do nada ou do quase nada, de diferenciar através da luz um mundo onde até então perdurava o "vazio e vago, onde as trevas cobriam o abismo e um vento pairava sobre as águas". Muito do que possa ser visto como grande arte do presente pode mais tarde revelar-se apenas mito. E talvez a força da grande arte necessariamente em algum tempo a converta em mito, do qual será preciso um novo revolucionário que a liberte. Pensar a fronteira entre o dogma e a criação é uma das tarefas da psicanálise em conjunto com a filosofia. Embora a história de ambas nos mostre que elas também oscilam entre dogma e criação. Se arte, psicanálise e filosofia compartilham do mesmo, a tarefa será sempre a de sair da "teché" em direção a "poiesis".

Referências Bibliográficas
1 - Bioy-Casares, A. - A Invenção de Morel, Rio de Janeiro, Rocco, 1986.
2 - Freud , S. - Beyond the Pleasure Principle, in The of Sigmund Freud, vol. XVIII, London, The Hogarth Press and gthe Institute of Pshycho-Analysis, reprinted, 1978..
3 - Leminski, P. - Anseios Crípticos, Curitiba, Criar Edições Ltda., 1986.
4 - Lopes, A. J. - Estética e Poesia - Imagem, Metamorfose e Tempo Trágico, Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ, 1994.

* Anchyses Jobim Lopes, Médico (UFRJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Doutor em Filosofia (UFRJ), Psicanalista e Membro Efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ
Publicado na Revista - Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise, nº 2, Rio de Janeiro 95/96.