A auto-regulação, a regulamentação e outros nãos da psicanálise Anchyses Jobim LopesI Círculo Brasileiro de Psicanálise Assyrii phoenica vocant; non fruge neque herbis, Sed turis lacrimis et suco vivit amomi. (Os assírios a chamam de Fênix, não se alimenta de hervas ou grãos, Mas das lágrimas do incenso e da seiva do bálsamo.) Ovidius, Metamorphoses, liber XV Há mais de cinco anos, periodicamente reúne-se no Rio de Janeiro o Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas. O CBP vem participando desde a primeira reunião, tendo sido, por iniciativa de seus presidentes, Luis Maia e Maria Mazzarello, a única entidade a produzir publicações sobre a Articulação. Na Assembléia de Delegados do CBP, realizada em Belo Horizonte a 24 de agosto de 2004, foram discutidas tanto questões e problemas trazidos da Articulação quanto a sua própria efetividade. Permanece a perene ameaça de uma regulamentação espúria. Ameaça tanto nos moldes dos projetos de lei que já foram barrados no legislativo, quanto outras em moldes mais sofisticados e perigosos, como a que hoje ocorre com a tentativa de reduzir a Psicanálise à psicoterapia e regulamentá-la, objetivo de uma entidade nova, que propõe regular todas as formas de psicoterapia possíveis, contando com nomes academicamente respeitáveis para tal empreitada. Na reunião de Belo Horizonte ficou determinado que uma nova Assembléia fosse realizada em abril do ano seguinte, especificamente para elaborar ao Movimento da Articulação uma proposta: (...) Quanto à posição do CBP na questão da regulamentação da Psicanálise decidiu-se que cada filiada promoverá a discussão entre seus membros (...) ficou decidido que em abril de 2005 será realizada uma Assembléia Extraordinária de Delegados, com o único objetivo de discutir este item (...) reconheceu-se que a regulamentação da Psicanálise é inevitável e que, por isso, o CBP precisa trabalhar no sentido de manter de alguma forma a Psicanálise livre de tantas investidas que, em síntese, deturpam seus princípios (...). Na primeira manhã da Assembléia Extraordinária de Delegados ocorrida em Salvador, dias 22 e 23 de abril, os representantes de cada uma das sete filiadas presentes explanaram sobre as discussões e a orientação tomada por cada sociedade sobre as questões da regulação e da regulamentação da Psicanálise. Após o consenso de que a regulamentação não é desejável (e, talvez, não tão inevitável), conclui-se, para repeli-la, da necessidade de uma auto-regulação, idéia muitas vezes já levantada na própria Articulação. À tarde e a manhã seguinte foram foco da elaboração de uma proposta a ser apresentada à Articulação. O texto nascido deste trabalho originou-se da colaboração de todos, naqueles raros momentos em que a felicidade acontece espontânea e despercebida e, tal como na música, trabalha-se em harmonia, mas não em uníssono. A proposta formulada pelo CBP tem por finalidade permitir uma melhor organicidade da Articulação, de modo que se efetivem várias demandas colocadas nas próprias reuniões do movimento. Demandas que até o presente não puderam ser efetivas: criar um site, contratar uma assessoria de imprensa, criar uma secretaria que retire de uma única entidade o poder de convocar ou não as reuniões, etc. Nas últimas reuniões da Articulação, muitos foram os que registraram seu desalento, a sensação de não se estar indo a algum lugar, diminuindo bastante o número de representantes e sociedades. Em torno deste impasse e de dificuldades há muito percebidas pelos representantes do CBP na Articulação, construiu-se a proposta de auto-regulação. Através da criação de uma ONG, a proposta foi elaborada procurando resgatar todos os termos e argumentos trazidos pelos representantes das várias sociedades, durante as próprias reuniões da Articulação. A crise desencadeada há mais de cinco anos pelas tentativas espúrias de apropriação da Psicanálise teve, como toda crise na qual não se soçobra, vários efeitos positivos. Apesar de todos os narcisismos e querelas históricas, ficou claro quanto as sociedades psicanalíticas são, ou tentam ser, entidades democráticas nas quais os próprios membros são os donos. Autogestão, propriedade dos meios de produção, participação direta nas Assembléias: termos que os arúspices da globalização vaticinam como ultrapassados, antieconômicos e impeditivos para a competição. Ainda bem que no mundo das cadeias do fast - fast-food, fast-religion e fast-university a Psicanálise está onde sempre esteve: na contramão. Olhado pelo outro lado do cristal, a multiplicidade de cisões, brigas, e até expurgos pode ser vista como parte da riqueza do legado freudiano. Quanto mais sociedades e diferenças teóricas, mais rica e distante do sistema de partido único, do modelo econômico massificante ou de uma religião universal. Já dizia Nelson Rodrigues: toda unanimidade é burra. Dentro da própria história do CBP, as brigas e desligamentos fizeram-no evoluir para sua natureza plural, em que cada filiada é absolutamente livre de ingerências ou padronizações, tanto quanto as preferências teóricas e clínicas, quanto ao tipo de formação escolhida. Esta foi uma das razões pela qual o CBP pôde se sentir à vontade para formular o mesmo: uma auto-regulação que mantenha a absoluta liberdade e autonomia de cada entidade psicanalítica, sem nenhum poder de ingerência dentro da casa do outro. Ao mesmo tempo em que permitiria uma organicidade mínima, facilitando a ação comum das entidades psicanalíticas. Não tanto uma ação, foi mais uma reação que motivou, há mais de cinco anos, o nascimento da Articulação. Tornara-se imperioso reagir contra entidades que, muito além das charlatanices habituais afinal estas fazem parte de uma história paralela desde que Freud criou a Psicanálise tentaram aproveitar a não-regulamentação no interesse de legalmente monopolizar o termo Psicanálise em proveito de uma grotesca mistela. Além da tentativa de usurpação, eram ?coisas? que mesmo que não se consiga uma definição universal do que é Psicanálise, sempre ficou claro aos participantes da Articulação que ?aquilo? não era Psicanálise. Principalmente por serem ?coisas? que não compartilham da Psicanálise como ética. Apostilas, receitas de bolo, conceitos de normatização e normalidade, isto não combina com o legado de Freud, e sim a ética socrática de que só sei que nada sei, de que cada um tem de parir sua própria verdade. Natureza comum apenas entre os sábios e os artistas, Freud era daqueles que vêem tudo a partir de um discreto ângulo em relação ao universo. Sejamos sinceros, a primeira leva de seus seguidores compunha-se de uma notável confraria de excêntricos e desajustados. Mas, tal como acontece em qualquer área, a Psicanálise sempre começou a decair quando os arrivistas que se autodiagnosticam como ?os normais? e os políticos do tipo ?eu sei o que é melhor para todos?, descobriram que afinal aquela maluquice toda podia ser útil para se ganhar dinheiro e prestígio. Felizmente há na Psicanálise algum tipo de Princípio da Fênix: das cinzas que compõem tudo que está centrado demais, surge (ou surta) uma nova anormalidade que cria todo um novo séqüito de excêntricos: Klein, Winnicott, Lacan. Foi assim que na proposta do CBP, além da natureza democrática e da propriedade coletiva das sociedades, tomou como outro de seus pontos de partida o caráter artesanal da formação do psicanalista. Se o projeto da globalização atual parece ter surgido de um pesadelo de Aldous Huxley, o psicanalista deve ser o oposto dos alfas e epsilons de O Admirável Mundo Novo: não há dois iguais. De igual talvez só haja a sobra da análise pessoal e a incapacidade de cada psicanalista. É com narcisismo e vaidade não muito sutis que temos o prazer de citar um trecho da Carta de Princípios do Círculo Brasileiro de Psicanálise, documento redigido há vinte anos: (...) Na Instituição Psicanalítica a produção científica se faz sobre os restos inanalizáveis, fazendo destes traços secretos uma condição de formação permanente. Este processo desenvolve-se com os pares e pela criação de um espaço de palavra sobre o que permanece não dito. Nesta Instituição Psicanalítica não propicia a fixação de identificações imaginárias. A Instituição Psicanalítica testemunha a permanente passagem para o ?tornar-se?, que dá lugar para o inacabamento, através da produção teórica, da prática clínica e institucional. À crise desencadeada pelos projetos espúrios de regulamentação somou-se outro questionamento mais antigo: uma vez que a Psicanálise deixou de ser um saber marginal e foi incorporada ao saber universitário, ainda existe necessidade e lugar para as sociedades psicanalíticas? Sim. Além dos argumentos já delineados soma-se outro muito simples, como escreveu Freud: na universidade pode-se aprender algo sobre a Psicanálise, mas a Psicanálise só se aprende no divã. Por motivos legais e por sua própria natureza, a universidade não pode exigir ou manter a prática da análise pessoal. Sem a análise pessoal é mais freqüente que a Psicanálise se torne vítima do que Althusser nomeou revisionismo psicanalítico: incorporar a Psicanálise sim, mas apenas como apêndice do saber psiquiátrico ou como uma dentre um mercado persa de teorias das faculdades de Psicologia. Carecendo da experiência pessoal na pele do próprio terapeuta, é natural que na universidade a Psicanálise freqüentemente hipertrofie-se em uma couve-flor de sutilezas teóricas (muitas neoplasias também possuem o aspecto de uma couve-flor), mal disfarçando grandes resistências e racionalizações. Também deixou Freud a sutil frase de que todos se tornam adeptos da Psicanálise, contanto que a Psicanálise os poupe. Por isto, no documento elaborado na referida Assembléia, deixou-se bem claro tanto a necessidade de existência da instituição psicanalítica, com a formação calcada no tripé teoria/supervisão/análise pessoal, quanto da sua imperiosa independência diante de qualquer outra instituição, seja governamental, religiosa ou universitária. Em antecipação à nova reunião da Articulação, que ficara agendada para junho, a proposta elaborada em Salvador foi primeiro divulgada por escrito e/ou por e-mail para os representantes e sociedades participantes. Algumas respostas se fizeram, múltiplas, desde alguns representantes e instituições que discutiram e concordaram com os princípios do documento elaborado, até outros que se indignaram com o fato de o CBP ter tido a liberdade de internamente debater e aprovar tal texto. Como resultado da polêmica, o encontro da Articulação de 25 de junho último, quando a proposta foi pessoalmente lida e apresentada, para que fosse levada a discussão interna de todas as sociedades, contou com quase o dobro de participantes da reunião anterior. O clima de melancólico desamparo das últimas reuniões foi substituído por um vento de ira e um sopro de alento. A polêmica, temporariamente suspensa, ansiada para a próxima reunião da Articulação a partir do modo de sua própria convocação, parece favorecer o Princípio da Fênix.
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