ANCHYSES JOBIM LOPES   


O Texto Literário: Metamorfoses e Viagens Têmporo-Espaciais

Como a leitura literária possibilita habitar novos mundos.

Apesar de sua publicação posterior, o texto serve de introdução aos seguintes

Publicado em: Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, n° 41, Setembro de 2003/Maio 2004.



A Importância do Ato da Leitura - Leitura de Mundo e de Texto
É inquestionável que a leitura e a escrita são indispensáveis como meios para a transmissão de conteúdos e informações. Em uma sociedade cada vez mais complexa, para quem o acesso a tais meios foi negado torna-se muito difícil, ou até mesmo é abortado, o exercício pleno da cidadania. A tarefa a que nos propomos é ir além, defender a leitura e a escrita não somente como meios de transmissão, mas como resultado de complexas funções psicológicas, essenciais para o pleno desenvolvimento da capacidade de pensar, refletir e criar no difícil mundo que nos cerca. Trata-se de defender os atos da leitura e da escrita em si mesmos como necessários para a construção de uma ética e de seu exercício por meio da cidadania.

Tornou-se muito difundida a idéia de que leitura é “leitura de mundo”. Este conceito chama a atenção para que a leitura seja considerada como muito mais que um instrumento e sim como modo de compreensão, e que por detrás de qualquer interpretação sempre se escondem ideologias e interesses. Entretanto o conceito de leitura como “leitura de mundo” é abrangente demais, englobando todas formas de compreensão de que o ser humano dispõe para conceber seu universo, muitas das quais não verbais. A questão da leitura como “leitura de mundo” confunde-se com o que seja a própria essência da linguagem.

Tanto em natureza, quanto no domínio do que é especificamente humano, há incontáveis tipos de linguagem, algumas destas linguagens: o canto dos pássaros, o desenho dos mapas, a história lida através das casas de uma cidade, uma pauta de música. Para cada uma destas linguagens há uma ou mais formas de leitura. É claro que se torna um conceito muito amplo, domínio de uma discussão sobre o que é linguagem em si, e que acaba por abranger: todas as estruturas que regem a vida como expressões de linguagem (toda a vida baseia-se em um código que pode ser expresso por apenas quatro letras: RNA/DNA); todos os seres vivos como emissores e receptores de formas de comunicação; os meios como a mente e o cérebro funcionam e decodificam estas mensagens, e daí quase ao infinito.

Por outro lado, o conceito de leitura como “leitura de mundo”, também pode restringir a leitura a ser compreendida como mero veículo e, neste caso confunde-se a diferença entre informação e conhecimento. Se todas as linguagens transmitem informações, o acúmulo passivo destas, coisa que um catálogo telefônico executa muito bem, não constituí o processo mais essencial do aprendizado. Dentre muitas definições, o conhecimento pode ser visto como o propósito de uma parte em um todo, a percepção de uma unidade sistemática que pode ser aplicada a novos problemas, ou a criar novos conjuntos.

As Leituras do Texto Escrito: do Manual da Geladeira ao Jornal
Deduz-se que é mais prudente e útil permanecer dentro de um domínio mais específico: a leitura como leitura do texto escrito. Mesmo em relação ao texto escrito, quando falamos em leitura - deixemos, no momento de lado a escrita - também se pode considerar que existem várias formas de ler um texto, bem como textos de diferentes naturezas, ressaltando que os limites nem sempre são nítidos.

Há uma leitura que podemos denominar instrumental simples: o manual de um aparelho doméstico ensinando o que devemos fazer para que funcione. Há uma leitura instrumental mais complexa: um bom livro didático que informa, demonstra e exercita a solução de questões, tendo por meta capacitar o aluno para a futura resolução de problemas além daqueles contidos no livro. Embora no segundo caso o desenvolvimento de aptidões tenha por meta desenvolver raciocínio e a criatividade, em todas as formas de leitura instrumental é necessária uma correspondência exata entre o texto e o objeto a que dirige sua informação. Resumindo: se o manual não permite que se consiga fazer funcionar a geladeira há algo errado, ou com o texto, ou com a geladeira.

Também existem leituras cuja adequação entre conteúdo e objeto é mais sofisticada e menos objetiva, podem ser denominadas leituras informativas. Para ler notícias de jornal ou revista devo avaliar a capacidade de síntese e a fidedignidade da publicação e do autor. É importante indagar se acredito ou não no jornal que estou lendo, mais importante é indagar por que o faço ou deixo de fazê-lo.

Quando se fala da importância da leitura, do ato de ler e dos livros, sempre se pensa em algo além das formas de leitura instrumental ou informativa: pensa-se na leitura de textos literários - de qualquer tipo, para qualquer idade. Mas para a defesa da leitura literária, como ir além dos chavões: “ler faz bem”, “ler ajuda a pessoa”, “ler faz subir na vida” e, principalmente, qual a relação com a cidadania?

Imagens Contra Imagens: Cinema, Televisão e Literatura
A leitura do texto literário implica que se deve esquecer que tudo que há defronte de si é uma folha com sinais impressos. Ao contrário da leitura instrumental ou da leitura informativa, o objeto ao qual dirige-se a atenção não é externo, mas recriado dentro do leitor. Seja um romance, uma peça de teatro ou um poema, o leitor constrói dentro de seu eu uma imagem e um sentimento. Ou várias imagens e sentimentos, como no caso do romance, em que além de se esquecer que se trata de simples papel impresso, as imagens de uma história passam a se desenrolar interiormente ao eu do leitor, como se dentro de si possuísse uma tela de cinema.

Ao contrário do cinema comum ou da televisão, o espaço entre a palavra escrita e a imagem é muito amplo e muito mais difícil de ser transposto - fonte de debates sem fim para filósofos, lingüistas e psicólogos ( L. Wittgenstein, N. Chomsky, J. Lacan, dentre os mais famosos ). No cinema e na televisão a imagem já vem pronta e acabada. Ao contrário da imagem visual já pronta, a imagem construída dentro do leitor não possui contornos ou detalhes precisos, exceto por um ou outro item essencial. Mas é esta indeterminação da imagem criada pela leitura que será uma das fontes da infinita possibilidade de interpretação e recriação do texto. A imagem do cinema e da televisão impõe-se à força ao espectador. Já a transformação da página impressa em imagens interiores é o “pulo do gato” que muitos não conseguem realizar. Principalmente ao início do ato da leitura, há de se remover o obstáculo inicial que é o esforço ativo em transformar palavra em imagem, esforço que depende de uma deliberação consciente da vontade.

O cinema e a televisão, sem falar dos jogos eletrônicos, veículos que se utilizam da imagem já pronta, impõem imagens em uma tal velocidade e uma intensidade de conteúdos, que muitas vezes não deixam ao espectador tempo para digeri-las. De acordo com o aforismo da psicanálise “o que se sofre passivamente, inconscientemente se é obrigado a repetir ativamente”, podemos refletir sobre a compulsividade e a dependência - características de todo vício - criadas deste modo. Principalmente se as imagens veiculadas são agressivas e/ou sexualizadas; constituem um estímulo ao agir sem pensar.

Já as imagens intrasubjetivas criadas pela leitura, além do esforço de pensamento que requer sua criação, possuem uma dinâmica de construção mais lenta, que tanto exercita a criação de novas imagens ( donde imagem em ação: imaginação ), quanto permite com mais facilidade a transposição do segundo fosso do pensamento, que é a transformação das imagens e experiências individuais em idéias abstratas e universais.

Mímese, Metamorfoses e Viagens Têmporo-Espaciais
Mas admitamos que nenhum hábito é adquirido sem uma boa dose de prazer. É por meio da imagem criada pela leitura do texto literário - ou melhor, da sucessão de imagens - que podemos nos transformar em um ou mais personagens e viver suas histórias. Através das imagens, que também podem ser evocadas pela contação oral, o íntimo do eu transforma-se em um teatro interior. Como seres humanos somos por natureza criaturas que possuem prazer na mímese ( idéia que vem desde a Poética de Aristóteles ), isto é, o prazer tanto na representação ou imitação do real pela arte, quanto na imitação do gesto, voz e palavra de outrem. Essencial é não restringir o acesso aos textos, donde a biblioteca passa a ser indispensável para a democratização da leitura, assim como não restringir ou inibir a experiência de leitura por meio de uma interpretação prévia e dogmática. Devemos sempre lembrar a idéia de Roland Barthes, de que toda interpretação prévia é um modo de culpabilizar o leitor.

A imagem da leitura literária metamorfoseia o leitor em diferentes personagens, transporta-o para épocas de culturas e crenças que já não mais existem, ou onde nunca poderá ir, torna possível de viajar no tempo e no espaço, e não como mero espectador de um documentário, mas participante em uma experiência de “estar na pele de alguém”. Destas viagens não se retorna impunemente. Ter vivido “na pele” de outro muda o modo como enxergamos a nós mesmos e a sociedade em que estamos.

A riquíssima herança de todas literaturas, gigantesca e infinita teia, faz com que todos textos se comuniquem ou, como fantasiava o escritor Jorge Luis Borges, formem a Biblioteca de Babel. Assim também são infinitas as possibilidades de transformação e as direções no tempo e no espaço. Definiu o Nobel Elias Canetti:, o poeta-escritor é o guardião das metamorfoses. Cabe a cada leitor reativar esta herança, inventar seu roteiro de viagem e arriscar as transformações.

Lendo Grande Sertão: Veredas, o leitor se transforma em Riobaldo, e em Diadorim, e em Hermógenes. Por meio de uma tela interior - ou seria um sonhar acordado - o leitor peregrina por todo um sertão em que possivelmente jamais esteve e jamais estará, experimentando e sofrendo no teatro de seu próprio o eu o dilema de uma pergunta, tantas vezes formulada de modo apenas teórico e vazio: que é o Mal, ele existe? Sem falar no lúdico dos jogos de linguagem, das expressões regionais inusitadas e dos descarados poemas que Guimarães Rosa tanto se comprazia em inserir no texto. Grande Sertão: Veredas também é uma peregrinação pela linguagem brasileira, pela redescoberta do prazer infantil em desvendar, inventar e brincar com o sentido e o som das palavras uma das essências da poesia.

Mas, afinal, o sertão do livro existe só no texto e só por meio dele é recriado? E depois de termos sido tantos personagens, quem somos nós agora? Com que olhos agora Riobaldo, Diadorim e Hermógenes nos julgam? Agora como julgaremos nós a alguém?

Formigas ou Seres Humanos: Diversidade, Mudança e Liberdade
Já mencionamos como os meio de comunicação predominantemente visuais, geridos na maior parte das vezes por nenhum outro interesse que o lucro monetário, podem ser utilizados como um modo de inibir o pensamento, como uma indução para que inconscientemente seja repetido o estímulo agressivo e/ou sexual, estímulo que, como em todo vício, tem de ser repetido sempre com freqüência e intensidade crescentes. Estamos no domínio da anti-ética, que naturalmente gera uma anti-cidadania.

Além de opor-se a esta anti-ética, a importância da leitura para a construção da cidania pode conduzir-nos em direção de uma outra reflexão. Num mundo que tende à globalização e à homogeneidade, ao empobrecimento totalitário através da massificação, permitir a transmissão e a manutenção da diversidade, da riqueza das inúmeras formas de existir e viver humanas, tornou-se muito mais que um beletrismo acadêmico, mas um imperativo se o ser humano quer permanecer humano.

Porque o plenamente humano é infinitamente diverso, sem contornos precisos, sempre em desenvolvimento e crescimento. Como afirmava o filósofo grego, não podemos colocar duas vezes o pé no mesmo rio: a água correu, já é outra, envelhecemos um ínfimo de tempo, já somos outro. Com todas as personagens de cinema, televisão, teatro, livro ou sonho, com as quais em parte nos identificamos e em parte rejeitamos, quais as fronteiras e contornos exatos da personalidade de quem quer que seja?

Algumas criaturas vivem em comunidades de centenas de milhares de seres ou mais: formigas, térmitas, abelhas. Todas, dentro de um número de três ou quatro castas, dentro de cada casta todos seres são idênticos entre si. Seu comportamento é absolutamente rígido e biologicamente determinado. Não possuem outra escolha além de serem exatamente como são. Não se preocupam com questões como liberdade, muito menos com cidadania. Mas para os seres humanos o reconhecimento da diversidade, da imprecisão e da mudança, torna-se essencial à idéia de liberdade. À cidadania, que é o desempenho dos direitos civis e dos deveres políticos, é implícita não apenas a idéia de liberdade, mas principalmente a liberdade de ação, para o acesso a bens e ao bem-estar, para si e para as gerações futuras. Em tempos de crise inflacionam-se as doutrinas salvacionistas e de auto-ajuda, que possuem por lema “mantenha seu eu saudável, mesmo que a sociedade esteja muito doente, de preferência não aja - já que não pode mesmo - e mantenha sua liberdade interior”. Nestas doutrinas todas as perguntas já foram respondidas, o passado escraviza o presente e o futuro não existirá, porque será sempre uma repetição cada vez mais decadente.

Nada mais distante da real liberdade e do exercício da cidadania, que obrigatoriamente implicam em liberdade de ação. Nada mais distante de uma liberdade de ação cuja dúvida, se escolhi certo ou não, jamais deixará de causar angústia. Por mais que as doutrinas salvacionistas forneçam a praticidade das respostas prontas, é este eterno salto no escuro que de algum modo obriga o ser humano a criar, a ser um pouco mais que uma formiga, a ter um futuro.

O Reconhecimento do Outro e o Nascimento da Cidadania
O ato da leitura do texto literário, através das metamorfoses e viagens têmporo-espaciais que produz dentro do eu, além de defender a tão ameaçada subjetividade no mundo contemporâneo, coloca-nos “dentro da pele” do outro. Este estar dentro da pele de outrem faz com que ele seja reconhecido como alguém com vontades, desejos e história própria. Quando vejo outros à sua semelhança posso passar a reconhecê-los como seres humanos que, como todos seres humanos, são um fim em si mesmo e não um mero objeto para que eu satisfaça minha vontade, ao mesmo tempo que me identifico com o que possuem de comum e passo a respeitar as diferenças. Por esta porta entramos no domínio universal de uma ética racional, única condutora de valores realmente democráticos.

Claro que tal porta é uma condição necessária, mas em muitos casos não suficiente, para a construção de uma ética. Sempre se pode lembrar exemplos de pessoas cultíssimas e sem quaisquer valores morais. Assim como a leitura não é a única porta possível, toda experiência humana plenamente vivida também o é. Mas é inegável que se trata de uma das mais importantes entradas. Todas épocas históricas em que o conceito de cidadania esteve forte, foram épocas de acesso aos bens culturais escritos, mesmo que esta cidadania e estes bens fossem privilégio de certas classes ( a democracia ateniense, a república romana, o nascimento da imprensa e a difusão da Renascença, por exemplo ).

A restrição da leitura e da escrita sempre foram o apanágio de regimes totalitários, de nacionalismos calcados em idéias de superioridade racial e de fundamentalismos calcados em idéias de escolha divina. Não por acaso todos poderes ilegítimos queimam bibliotecas, proíbem livros, censuram textos, impõem interpretações uniformizantes e excludentes, ou simplesmente matam quem exerce o subversivo exercício da escrita. Todos lembramos de exemplos contemporâneos ou recentes. Mas a globalização, tentativa de tornar terra arrasada as diferenças - isto é de proibir as metamorfoses e as viagens têmporo-espaciais através do texto - são tão antigas quanto a história da escrita, e da leitura.

Bibliografia Básica:
LOPES, A. J. Contribuições de uma Teoria da Leitura e de uma Nova Estética Para a Educação, Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil, número 31. Campinas, ALB / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, Julho 1998.
LOPES, A. J. Estética e Poesia: Imagem, Metamorfose e Tempo Trágico. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1996.
LOPES, A. J. Novos Paradigmas: Hipercomplexidade e Autopoiese - Algumas Considerações Para a Defesa da Alfabetização, Leitura e Escrita. Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil, nº 37, Campinas, ALB / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Julho 2001; também disponível através dos Anais do XII Congresso de Leitura do Brasil - Encontro 12 / I Seminário Sobre Letramento e Alfabetização, CD-ROM, Campinas, Associação de Leitura do Brasil/UNICAMP, 2000 .

* Anchyses Jobim Lopes, Médico (UFRJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Doutor em Filosofia (UFRJ), Psicanalista e Membro Efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ
Publicado em: Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, n° 41, Setembro de 2003/Maio 2004.