Luto e Melancolia versus Distimia

O uso excessivo de remédios psiquiátricos, principalmente nos quadros de depressão. A utilização das classificações internacionais contemporâneas como facilitadoras deste abuso. A simplificação de vários quadros clínicos diferentes sob o rótulo de distimia. A ideologia cognitivo-comportamental e reducionista induzindo a medicalização. A Psicanálise como método terapêutico e visão de mundo opostas às da que embasam o rótulo de distimia.

Trabalho apresentado e publicado nos anais da XVII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise – VI Jornada do Círculo Psicanalítico de Sergipe - VII Jornada Sergipana de Psiquiatria – INTERFACES ENTRE A PSICANÁLISE E A PSIQUIATRIA Aracaju 30 de outubro1º de novembro de 2008

Também Publicado em Estudos de Psicanálise, Publicação Anual do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Aracaju, nº 32, nov. 2009.



Resumo: O uso excessivo de remédios psiquiátricos, principalmente nos quadros de depressão.
A utilização das classificações internacionais contemporâneas como facilitadoras deste abuso. A simplificação de vários quadros clínicos diferentes sob o rótulo de distimia. A ideologia cognitivo-comportamental e reducionista induzindo a medicalização. A Psicanálise como método terapêutico e visão de mundo opostas às da que embasam o rótulo de distimia.

Abstract: Abusive use of psychiatrical drugs, mainly concerning depression diagnosis. Use of the international mental and behavior disorder classifications facilitating this abuse. Over simplification of diverse clinical diagnosis under the label of distimy. Cognitive behavioural ideology inducing over medicalization. Psychoanalysis as an opposite therapeutical method and world view.

Introdução: 'vai um Prozac aí?'

Na clínica social do CBP-RJ, no trabalho de consultório e no relato de alunos e colegas, é impressionante a hipermedicalização com a qual chegam quase todos os pacientes. Tanto quanto ao número de remédios, quanto à dose dos mesmos. O fenômeno não atinge apenas aqueles que poderiam receber o diagnóstico antigo de 'depressão', mas a todos quadros clínicos, mesmo os mais leves.

Já data de várias décadas o fato de que os fármacos psiquiátricos são receitados não apenas por psiquiatras, mas principalmente por médicos das mais diversas especialidades, em grande parte por neurologistas. A má fama devida, em grande parte, do mau uso da psiquiatria, o medo de se procurar 'médico de maluco', aliados a propaganda pelos meios de comunicação de massa sobre as descobertas da neurociência, tudo somado a leitura de autores de grande popularização, tal Oliver Sacks, tudo parece corroborar para que o neurologista seja visto como um especialista dotado de um saber mais científico e confiável que o psiquiatra.

Mas o fenômeno da hipermedicalização psiquiátrica atinge todas as especialidades; Recentemente acompanhamos o caso de uma familiar de oitenta e quatro anos, que procurou tratamento com três otorrinolaringologistas (diagnóstico de: sinusite, otite de repetição e desgaste da articulação têmporo-mandibular), todos especialistas altamente qualificados e titulados na especialidade, que incluíram Rivotril na prescrição, a despeito de que a paciente não trazia queixas psiquiátricas.

Nas supervisões coletivas e individuais é constante a procura do tratamento de crianças vindas com diagnóstico de TDA, e sempre medicadas. E igualmente constante a descoberta de que o problema seja principalmente desarmonia familiar ou outros conflitos ambientais, bem como inútil a medicação. Nas grandes metrópoles brasileiras, e mesmo nas cidades de porte médio, é fácil a constatação visual do número impressionante de farmácias. Em sua maioria lojas lindas e pertencentes a grandes redes. Lojas tão reluzentes, belas e cheias de mercadorias desejáveis como quaisquer outros do grande consumo. O que confirma a constatação feita há vários anos por um cidadão inglês, funcionário de uma grande transnacional, pessoa viajada por grande parte do ocidente e oriente, de que: em qualquer grande cidade do mundo há um botequim ('pub') em cada esquina, mas no Brasil também há uma farmácia em cada esquina. Hoje consideramos errada esta afirmação: há pelo menos duas farmácias em cada esquina.

DSM-IV e CID-10: ou como medicalizar sem fazer esforço.
O carro-chefe da antiga psiquiatria, fundada por Emil Kraepelin e Eugen Bleuler ao final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, possuía por fulcro a esquizofrenia. A partir da década de 60 do século passado, com o movimento da anti-psiquiatria e a partir de críticos e pensadores do porte de um Michael Foucault, a denúncia de que o diagnóstico de esquizofrenia servia para toda sorte de controles sociais e atrocidades, obrigou a mudança do eixo da psiquiatria. Pelo ocidente afora se difundiu o movimento anti-manicomial, que teve como a mais famosa de suas conseqüências iniciais a desativação dos hospícios a partir do trabalho de Franco Basaglia, na Itália, e chegou até o Brasil, tendo seu ápice na Lei Paulo Delgado. Num movimento paralelo de mudança da grande influência cultural, o eixo da psiquiatria foi transferido da Europa aos Estados Unidos. No Brasil os nomes e tratados europeus (Mayer-Gross, Bleuler, Henry Ey) foram substituídos quase que exclusivamente por um título americano (Freedman-Kaplan-Saddock). E, como mudança clínica mais importante, a doença base da psiquiatria foi transferida da esquizofrenia para a 'depressão'.

Foi bastante criticada a mudança ocorrida nas últimas classificações internacionais (2), a CID-10 e a DSM-IV. Se por um lado em itens, como em transtornos somatoformes e transtornos dissociativos, ocorreu a criação de diagnósticos novos e mais precisos, assim como houve um pequeno abrandamento na possibilidade de colocar em qualquer paciente mais grave o rótulo de esquizofrenia, por outro lado o abandono de diagnósticos clássicos, que tivessem alguma origem psicanalítica ou em uma compreensão dinâmica dos transtornos, foi muito recriminado. As mais novas versões das classificações internacionais, além da preocupação obsessiva em se desvencilhar de tudo que pudesse cheirar a psicanálise, assim como de toda antiga psiquiatria de psicopatologia fenomenológicas, tiveram por meta a construção de diagnósticos meramente descritivos, seguidos de longas listas de sintomas. A nosologia psiquiátrica tornou-se uma lista de rótulos, seguida de receitas utilizáveis com facilidade exagerada por qualquer tipo de profissional, novamente conduzindo ao abuso do conhecimento psiquiátrico, desta vez através da excessiva possibilidade de rotulação e, conseqüentemente, fornecendo um substrato pseudo-científico para a hipermedicalização. Também é apontada a ideologia subjacente a DSM-IV (2002) e CID-10 (1993), profundamente comprometidas com a teoria cognitivo-comportamental. A psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco resume o projeto das classificações internacionais:

(...) abandonar definitivamente a terminologia psicanalítica, psicodinâmica ou fenomenológica – que humanizara a psiquiatria durante 60 anos dotando-a de uma filosofia do sujeito -, para substituí-la por critérios comportamentais dos quais estava excluída qualquer referência à subjetividade (ROUDINESCO, 2008, P. 187)

Um excelente estudo realizado e publicado no Brasil por um psiquiatra, A psiquiatria no divâ – entre as ciências da vida e a medicalização da existência (3)(AGUIAR, 2004), confirma através de um estudo prático a hipermedicalização e confirma as críticas feitas às classificações internacionais. Mas, e nisto consideramos seu grande mérito do livro, o autor estuda criteriosamente os mecanismos de indução ao consumo de remédios psiquiátricos. Mostra o autor como os diagnósticos e listas da DSM-IV e CID-10 serviram a uma difusão simplificada, mecanicista e nada terapêutica dos diagnósticos psiquiátricos. Como esta simplificação foi utilizada pelos grandes laboratórios para propaganda de seus produtos. De como esta propaganda é comercialmente difundida não apenas pelas publicações médicas, mas, principalmente, pelos meios de comunicação de massa. O reducionismo nosológico tornou a rotulação psiquiátrica acessível não apenas aos profissionais de outras áreas, mas ao público leigo em geral. Sem ter crítica da manipulação mercadológica, os diagnósticos são vendidos à população, seja em artigos de revistas e jornais, ou pela televisão e pela internet. Sempre sob a capa de descobertas científica novíssimas e revolucionárias, reduzindo uma doença ou traço de comportamento à uma explicação genética, algo do tipo: Foi descoberto o gene que torna levadas as crianças, ou Por que os homens tendem a ser mais infiéis que as mulheres, ou Você pensa que está desanimado com a vida, mas pode ser distimia. Em revistas tais matérias são freqüentemente seguidas com listas de perguntas em questionários com o título: veja se você também tem ....

A observação corriqueira mostra como os diagnósticos e listas de sintomas possuem difusão em revistas semanais, em publicações para o público feminino e em revistas de divulgação científica popularizada (usualmente todas das mesmas editoras). AGUIAR (2004) descreve que, induzidos à crença reducionista de que todo o problema advém do transtorno X ou Y, o público já chega ao consultório ou ambulatório, de qualquer nível social, trazendo seu próprio diagnóstico: Doutor eu sou bipolar(4). Os médicos, principalmente os de emprego público ou que sobrevivem de convênios (isto é, quase todos), profissionais mal remunerados, com poucos minutos para a consulta, são sutilmente, ou na tão sutilmente, obrigados a ceder ao pedido do paciente pela droga que solucionará todos seus problemas. Pedido que terá mais sucesso se o médico já tiver sido bombardeado pela visita de representantes de laboratórios, pela propaganda em revistas médicas, por uma formação precária ou nula em Psiquiatria e, também, pelos mesmos meios de comunicação que atingiram ao paciente. Se não atender ao pedido do paciente, e sem tempo e ânimo para contra argumentar, o médico carregará para o resto de sua vida a culpa de não ter dado ao doente o remédio que solucionaria todos os seus problemas.

Distimia: um embrulho só.
A mais grave conseqüência desta mudança ideológica da criação de novos diagnósticos ocorreu nos transtornos do humor. Neste item a DSM-IV e, em um grau quase imperceptivelmente menor na CID-10, sob a capa de uma suposta cientificidade, produziram uma involução diagnóstica. Na fúria em eliminar o termo 'neurose', as classificações fundiram os diagnósticos de neurose depressiva e personalidade depressiva em uma única categoria clínica: a distimia. Na psicopatologia geral a palavra distimia referia-se a um sintoma, o de a quebra súbita do controle do humor, como em analogia, disbulia refere-se a quebra súbita do controle da vontade. Contrariamente a sua origem etimológica, o termo disbulia foi elevado de sintoma a diagnóstico. Ao mesmo tempo a novo uso do termo disbulia tornou este último impreciso quanto sua fronteira com o de transtorno depressivo maior.

Na neurose depressiva ou depressão neurótica temos um quadro de hipotimia, surgido a partir um tempo preciso ou não, mas que nitidamente não existia antes, pelo menos em gravidade. Um quadro clínico que, em sua maioria, não é social e laborativamente incapacitante. Na neurose, a 'depressão' surgiu a um tempo determinado, incomoda seu portador, muitas vezes com a mescla de ansiedade e depressão ansiosa, que busca tratamento. As pessoas a volta do paciente podem ou não sofrer com seu transtorno, mas é bem claro que este sofre muito mais. Certamente trata-se mais de um sintoma subjetivo mais que um sintoma social. A experiência clínica mostra como tais pacientes não reagem ou reagem mal aos antidepressivos. Entre pesquisas que classificam taxas altíssimas de incidência e prevalência da 'depressão', os pacientes com neurose depressiva constituem um dos grandes mercados para tratamentos psicoterápicos de todos os tipos. Até a CID-9 diagnóstico depressão neurótica fora mantido.

Em paralelo, na mesma classificação, entre os transtornos de personalidade, era incluído o transtorno afetivo de personalidade, ao qual podiam ser englobados, também, os diagnósticos de personalidade depressiva e de personalidade ciclotímica. Ainda existira em tratados de psiquiatria um termo mais remoto: a personalidade hipomaníaca. Em todos estes diagnósticos, o sintoma é muito mais social que subjetivo. O paciente sofre menos que o outro a sua volta, ou, então, não sofre. Raramente o portador busca tratamento. E, como todos os outros transtornos de personalidade, aqueles associados com a afetividade também não respondem a medicação. Caricaturalmente a personalidade depressiva é rotulada por muitos de síndrome da hiena, em referência a um antigo desenho animado infantil, em que a personagem, eternamente queixosa e pessimista, sempre repetia: ó vida, ó azar! Quando associado a queixas hipocondríacas, o diagnóstico é facilmente identificável para o leigo: aquelas pessoas que você se arrepende de perguntar - como vai?

A distinção de neurose e transtorno de personalidade é equivalente na obra de Freud à distinção entre neurose transferencial e neurose de caráter, que culminou possuindo por fulcro a distinção psicanalítica entre ego-distônico e ego-sintônico. Diferença estrutural básica para a clínica. Curiosamente, os mentores DSM-IV, em sua ojeriza a psicanálise, esqueceram de retirar este conceito, revelando como, mesmo a mais descritiva das classificações torna-se incompreensível sem alguma compreensão dinâmica. Na DSM-IV lemos (2002, pg. 642): (...) as características que definem um Transtorno de Personalidade podem não ser consideradas problemáticas pelo indivíduo (i.e., os traços são ego-sintônicos).

A classificação atual manteve a categoria genérica dos transtornos de personalidade, mas retirou qualquer diagnóstico referente aos transtornos afetivos de personalidade. Além do transtorno depressivo de personalidade, também foram suprimidos os transtornos de personalidade ciclotímico e hipomaníaco. Tratou-se de uma exclusão específica e notória, uma vez que todos os outros transtornos de personalidade antigos foram mantidos: obsessivo-compulsivo, histriônico, paranóide, esquizóide, anti-social. Sendo assim, todo e qualquer transtorno do humor foi considerado ego-distônico.

Neurose depressiva e personalidade depressiva fundidas sob a égide da distimia. E esta um pequeno item, se considerado todos os outros diagnósticos da seção de transtornos do humor, antigamente considerados 'psicóticos'. Qualquer leigo com acesso a internet, ou médico de formação precária em psiquiatria, lerá distimia, não entre os transtornos de ansiedade – 'mais leves' – mas ao lado da antiga psicose maniáco-depressiva, e dos atuais transtornos bipolar e depressivo maior – 'muito mais graves e sérios'.

Movida por uma ideologia declaradamente anti-psicanalítica, a redução de todos os quadros de depressão não psicótica no diagnóstico de distimia, embasa o idéia de que todas as 'depressões' são medicalizáveis. A aliança da psiquiatria organicista com a terapia comportamental, expressa com grande intensidade também no Brasil, reflete a luta pelo mercado do tratamento das depressões frente a todas outras formas de psicoterapia, principalmente a psicanalítica. A crítica de que a maioria das depressões neuróticas e das personalidades depressivas não reage ou reage mal à medicação, ficou obscurecida pela criação do diagnóstico atual de distimia.

O excesso do uso de antidepressivos tem conduzido a uma revisão crescente de sua eficácia e de seus efeitos colaterais (bem compreensíveis, se considerarmos a psicodinâmica dos transtornos de humor), como o aumento de suicídios, assim como os estudos sobre a cessação de seus efeitos após certo tempo. Críticas que se tornaram ainda mais aguda nos últimos anos. Se forem reais as hipóteses do aumento da incidência dos quadros de esclerose múltipla e de doença de Alzheimer nos países industrializados do ocidente, além de causas ambientais como a poluição, o uso excessivo e continuado de medicações psiquiátricas terá de ser pesquisado seriamente como uma das possíveis causas. Mas a 'era do Prozac' baseia-se em mais do que um conflito de interesses de mercado.

Vinheta Clínica: curta as perdas e deixe de curtir os sofrimentos.
Apresentaremos um breve caso clínico. Homem de 54 anos, natural de uma capital do interior do Brasil, da qual veio para cursar a universidade no Rio de Janeiro, com formação em área tecnológica, casado, pai de duas filhas, apresentando na primeira entrevista: hipotimia, ansiedade, irritação e queixas de insônia e fadiga. Os sintomas relatados tinham surgido há pouco mais de dois anos e vinham se agravando. Mudara de clínico geral e, depois, procurara um psiquiatra. Fora medicado com fluoxetina pelo segundo clínico e com imipramina pelo psiquiatra. No primeiro caso relatara melhora, mas o alívio dos sintomas teria cessado após 'uns seis meses', no segundo caso relatava que o remédio 'descera quadrado' (sic). Nos últimos seis meses também apresentara dores precordiais. Procurou um cardiologista e fez uma série de exames, inclusive um acompanhamento cardiológico de 24 horas. Foi constatado sofrimento cardíaco, mas cineangiocoronoariografia não revelava obstruções significativas, sem haver indicação para uma angioplastia e, muito menos, uma intervenção cirúrgica. O próprio cardiologista apontou causas predominantemente psíquicas e, por muita insistência de sua filha mais velha, o paciente acabou procurando tratamento psicanalítico.
Com duas sessões semanais, após um início de tratamento em que se atinha a problemas cotidianos, descobrimos uma conjugação de três fatos principais. Casado desde que se formara na universidade, aos 23 anos, há mais de doze ou quinze anos seu relacionamento com a mulher vinha se deteriorando e nos últimos anos fora reduzido a quase nada. Sua esposa iniciara uma profissão quando as filhas eram pré-adolescentes, na qual tinha sido muito bem sucedida, tornando-se financeiramente independente. Os dados do casamento eram relatados com indiferença: 'é o destino natural dos casamentos, que nem o de meus pais' (sic). O paciente tivera uma ascensão profissional contínua desde sua formatura, trabalhara por dezesseis anos em uma grande multinacional. Há quatro anos fora demitido e iniciara uma pequena empresa. Tinha ciência de que nunca mais galgaria o status profissional anterior e, embora menor, a renda atual era suficiente, mas não trabalhava mais na área profissional em que se formara. Também se sentia solitário e inseguro em ser o único responsável pela firma atual. E, em terceiro lugar, o paciente falava sempre de suas filhas como se fossem duas adolescentes e, por falha na primeira entrevista, não havia indagado a idade exata delas. Foi com mais de dois meses de tratamento que fui surpreso com o fato de que tinham 25 e 27 anos, já formadas e com pós-graduação, sendo que a mais velha preparava-se para um pós-doutorado nos Estados Unidos e mais nova planejava brevemente morar junto com o namorado.
Passamos dois anos e meio elaborando essas três grandes perdas. O paciente acabou considerando que seu casamento estava 'falido' experimentou fases de grande raiva e ressentimento com a mulher, fazendo extensos relatos de todos os problemas ocorridos durante trinta anos. Apesar de não seguir uma religião, vimos como sua sólida formação em colégios católicos do interior, bem como sua imagem de uma família grande na infância, alimentava uma idealização da qual ele mesmo não tinha consciência da importância. Também teve de ser feito o luto quanto à perda de sua posição profissional, o fato que seu conhecimento profissional tornara-se obsoleto e a aceitação da perda da ilusão sobre a falsa segurança, dada por trabalhar para uma grande empresa, da qual 'vestira a camisa' e subitamente o descartara. Luto para o qual foi mobilizada tanta raiva quanto ao do casamento. Quanto às filhas, das quais sempre fora muito próximo, o paciente passava pela popular síndrome do 'ninho vazio', tendo inclusive fantasias de que o insucesso delas as mantivesse morando consigo. Tanto quanto ao casamento, quanto a profissão e as filhas, era perceptível o investimento narcísico, o sentimento de falha em todas suas reparações de objetos infantis por meio da família e trabalho e um excessivo eu ideal, que julgava com severidade seu 'fracasso na vida' (sic).
Após dois anos de tratamento todos os sintomas iniciais tinham desaparecido. Sendo que os sintomas cardíacos foram os primeiros, em menos de seis meses. O paciente divorciou-se, o que, para sua grande surpresa, foi muito bem aceito pela ex-esposa. Depois de dois breves relacionamentos, o paciente passou a ter um 'namoro firme' (sic) com mulher alguns anos mais jovem, também divorciada e com filhos. Companheira com a qual começou a realizar seu antigo sonho de viajar mais nas férias. Também passou a aceitar melhor sua situação profissional e o afastamento das filhas, com as quais mantinha contato bastante próximo e, para exaspero das mesmas, passou, em conjunto com sua ex-esposa, a 'pedir netos' (sic).
Consideramos este paciente como paradigmático, por ter tido perdas simultâneas nas três grandes áreas mais significativas da vida para a maioria das pessoas. Mas não consideramos que tenha sido uma psicanálise no sentido tradicional do termo. Além do tratamento apenas com duas sessões semanais, a neurose infantil e a constelação edípica foram trabalhadas para o abrandamento do eu ideal e dos ataques aos objetos infantis, mas não se tratou de um trabalho tão extenso e maciço como teríamos desejado. Em palavras do paciente, que iniciara o tratamento se dirigindo a mim como 'você', mas depois, durante mais de dois anos, sempre se dirigia a mim como 'senhor' e 'doutor', eu 'reencarnava' (sic) seu falecido pai. A alta foi solicitada pelo próprio paciente e não consideramos que a transferência tenha sido tanto desfeita como desejaríamos. Mas o paciente já não precisava tanto de seu grande pai da infância e de todo seu julgamento severo.

Psicanálise: a apologia do luto
A psicanálise foi construída a partir de uma visão trágica da natureza humana. Freud era um notório pessimista, e todos os fatos sócio-políticos da primeira metade do século vinte reforçaram sua visão de mundo e da natureza humana. A psicanálise possui como centrais conceitos como: trauma, castração, objeto a, falta, finitude e, principalmente, o de pulsão, cuja satisfação integral ou permanente seria a morte. Mais recentemente os termos desamparo e ressentimento (KEHL, 2004) apareceram tanto na literatura psicanalítica como em outras áreas do conhecimento sobre o sujeito. É atribuído à Freud o dito de que o estado natural da humanidade é um estado de branda infelicidade. Em parte por que o conceito freudiano de felicidade não é o de uma satisfação exclusivamente individualista, mas o de realização limitada dentro das possibilidades reais. Satisfação que é fruto de um pacto simbólico que visa a continuidade e produtividade do sujeito e da sociedade. Não o imediatismo do gozo absoluto e mortífero da promessa do consumismo imediato e irrefreado, da ilusão de um eu absoluto, mas a satisfação parcial ao longo do tempo finito do eu e da cultura, procurando aumentar o mais e melhor possível a vida e o pouco deste tempo que realmente dispomos, o que só possível se temos diante de nós o outro.

A psicanálise está na contramão ideologia da sociedade de consumo globalizada, do consumismo desenfreado e lucrativo, para alguns. Também vai contra a tendência atual de busca por resultados rápidos, da propagando do 'happy end' como ideal de vida e da idéia de que todo sofrimento é patológico. De européia para americana, da ênfase na esquizofrenia para as 'depressões', do psicanalítico e fenomenológico ao comportamental, não por acaso a mudança do eixo da psiquiatria foi acentuada pela globalização e difusão pela indústria cultural de massa americanizada, com seu ideal de competitividade e sucesso. Tornou-se fato corriqueiro na áreas psi e social que as drogas alucinógenas idealizadas pela contracultura dos anos 60 e 70, foram substituídas pelas que fornecem a ilusão de poder e sucesso, drogas que mascaram todo sentimento de perda e de desamparo: cocaína e fluoxetina.

Como processo terapêutico, a psicanálise não oferece ilusões de satisfação plena e felicidade permanente. A revivência e a elaboração das perdas, antigas e recentes, constituem-se em pilares do processo psicanalítico. Mas as perdas só podem ser revidas e elaboradas se a agressividade e a ambivalência, constitutivas de todo ser humano, tiverem espaço e tempo para serem manifestas em uma terapia: a diferença entre luto e melancolia. Sem dúvida, a tomada de conhecimento limitada do lado escuro de nós mesmos é algo que todos gostaríamos de ser poupados, se fosse possível. Claro que a psicanálise é um tratamento caro, mesmo que as sessões sejam o mais barato possível em uma clínica social, por causa da freqüência e duração do tratamento, e ainda mais dispendioso em termos de investimento afetivo e comprometimento pessoal. Se a fluoxetina funcionasse o tempo todo e para todos, seria perfeita.

Conclusão: a vantagem em se ser sempre do contra
Cabe ao psicanalista defender a antiga neurose depressiva, muitas vezes seu principal ganha-pão, na certeza de que só a psicanálise pode ajudar eficaz e duradouramente o paciente. A transmissão da psicanálise, em instituições a margem do poder público, lhe dá o dom da liberdade diante dos modismos diagnósticos, mesmo sob a capa de sistemas globalizantes e mais científicos de nosologia.

Só nos resta repetir e estender tanto para o psicanalista enquanto terapeuta, como para psicanálise enquanto terapia, o que já escrevemos em outro texto sobre as próprias instituições que formam esse terapeuta e transmitem esta forma de terapia:

Apesar de todos os narcisismos e querelas históricas, ficou claro o quanto as sociedades psicanalíticas são, ou tentam ser, entidades democráticas nas quais os próprios membros são os donos. Autogestão, propriedade dos meios de produção, participação direta nas Assembléias: termos que os arúspices da globalização vaticinam como ultrapassados, anti-econômicos e impeditivos para a competição. Ainda bem que no mundo das cadeias do fast - fast-food, fast-religion e fast-university – a Psicanálise está onde sempre esteve: na contramão (LOPES, 2004).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AGUIAR, A. A. de A psiquiatria no divã - entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
CID-10 – Classificação dos transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artmed, 1993.
DSM-IV-TR – Manual diagnóstico e estatitístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2002.
HORNSTEIN, L. As depressões – afetos e humores do viver. São Paulo: Via Lettera – Centro de Estudos Psicanalíticos, 2008.
KEHL, M. R. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
LOPES, A. J. Sociedades Psicanalíticas: Modo de Usar e Efeitos Colaterais, Estudos de Psicanálise. Publicação Anual do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Número 27, Belo Horizonte, Agosto 2004.
LOPES, J. L. Diagnóstico em psiquiatria. Rio de Janeiro, Editora Cultura Médica, 1980.
ROUDINESCO, E. A parte obscura de nós mesmos – uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

NOTAS
1- Médico pela UFRJ, Mestre em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Mestre e Doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia da UFRJ, Professor Adjunto de Psicopatologia Geral e Especial em cursos de Graduação e Especialização em Psicologia, Membro Efetivo e Psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro, Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro, ex-Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise.
2- Apesar de referir-se á psiquiatria americana, o uso da DSM-IV ultrapassa muito suas fronteiras, de modo que podemos considerá-la também uma classificação internacional.
3- Acreditamos que o título do livro deva ter sido uma escolha comercial. Não há conceitos ou uma interpretação psicanalítica maiores no texto.
4- Sairia do escopo do atual trabalho uma crítica de como mais recente que o termo distimia, o termo bipolar tornou-se um modismo, se aproveitando das variações humanas universais do humor ao longo dos dias. Para que trabalhou extensa e intensivamente em instituições psiquiátricas, e lidou com pacientes verdadeiramente portadores da antiga psicose maníaco-depressiva, hoje transtorno depressivo maior e transtorno bipolar, a vulgarização do termo bipolar soa ofensiva à gravidade sintomas dos reais portadores do transtorno e de seu sofrimento


Anchyses Jobim Lopes, Médico (UFRJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Doutor em Filosofia (UFRJ), Psicanalista e Membro Efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ