Dos gritinhos da bebê ao canto do fort-da (psicanálise e música 2) From joyful baby screams to fort-da song (psychoanalysis and music 2) Anchyses Jobim Lopes RESUMO A polêmica do que teria vindo primeiro: música ou palavra. Retomada da questão a partir da observação de um bebê de três meses e meio e da transformação de seu choro em gritinhos prazerosos, por meio dos quais era exercida uma modulação de vogais e acentos associados a movimentos de todo corpo. A mudança do choro em gritinhos interpretada como passagem do som em voz humana, não mais uma expressão predominante de necessidade, mas de desejo, com o excedente que traz a pulsão. A narrativa de Freud sobre o menino de um ano e meio e sua brincadeira do Fort-da, na medida em que a sequência de vogais é talhada por um som consonantal duro e que a expressão não era simplesmente dita, mas cantada. O surgimento desse talhe como expressão da repetição e da pulsão de morte. A brincadeira e o canto como sublimação ancorada no sadismo e na perversão polimorfa infantil. Os gritinhos e o Fort-da como invocação do simbólico, ancorado em um significante de origem musical, que se desdobra posteriormente em uma face de poesia e outra de prosa. Fundador de um simbólico instaurado por uma afirmação (behajung) ocorrida em um momento primeiro de introdução ao simbólico, antes do aparecimento do sujeito barrado, anterior à negativa verbal e ao recalque. Fenômeno que produz a condensação fornecedora da melodia à música e que a faz ter “cem vezes mais energia que a própria palavra” (Rousseau). A harmonia interpretada já como fruto do recalque. O ritmo como domesticação de Tanatos por Eros, tornando toda música uma fonte benfazeja de compulsão à repetição. A música como fenômeno que une corpo e mente. Palavras-chave: Psicanálise e música, Ausência materna, Compulsão à repetição, Pulsão de morte, Sujeito barrado, Sublimação. ABSTRACT The polemic over which came first: words or music. This inquiry is retaken through observing a three and a half months old baby, and the change of her baby screams into pleasurable cries, used to exercise a cadence of vowels and accents joined with body movements. Transformation inferred as the course from mere sound to a human voice, not anymore as a mere expression of physical necessity but of desire and its surplus begotten by the instinct (trieb). Freud’s narrative about the one and a half year boy and his Fort-da game, this expression not merely being uttered but sang and an illustration how this vocal cadence is slashed through a rough consonantal sound. This slash interpreted as an expression of the compulsion to repeat and of the death instinct. The game and song as an example of sublimation anchored in sadism and polymorph perversion. Baby cries and Fort-da game invocative of a symbolical anchored through a musical significant, that later unfolds into poetical and prosodic faces. That founds a symbolical established upon an assertion (behajung) which occurs at a prime instant just before the advent of the divided subject, before verbal negative and repression. That phenomenon causes music as melody to be condensed, and to have a ‘hundred times more energy than word itself (Rousseau)’. Harmony is interpreted as an outcome of repression. Rhythm seen as the taming of Thanatos through Eros, making all music a benign source of compulsion to repeat. Music is a phenomenon that unifies mind and body. Keywords: Psychoanalysis and music, Maternal absence, Compulsion to repeat, Death instinct, Barred subject, Sublimation. ...quando ouço música, eu me escuto através dela, e, por uma inversão da relação entre alma e corpo, a música vive em mim. C. LÉVI-STRAUSS Introdução: palavra ou música? Quem veio primeiro? O ovo ou a galinha? Foi essa velhíssima anedota que resumiu um dos dilemas defrontados em artigo anterior (LOPES, 2006) ao tentarmos uma psicanálise da música: a música é a origem da palavra ou vice-versa? Em uma das trilhas — aquela traçada por Schopenhauer, Nietzsche e Didier-Weil (até certo ponto) — é a linguagem musical que cria a linguagem verbal. Na trilha aparentemente oposta — riscada desde Hegel até Lacan e passando por Heidegger — ocorre o oposto. Para Hegel a poesia é a origem tanto do pensamento como da possibilidade de todas as outras artes. Já Heidegger e Lacan propõem mais firmemente a palavra, não necessariamente poética. Por outra vertente, não há como escapar da linhagem do pensamento de Freud, que tanto gostava de traçar um paralelo entre a antropogênese a filogênese e redescobri-las no adulto. Que a música antecede e conduz a palavra é o que se pode observar em uma criança em seus primeiros dois anos: nesse caso constatamos a primeira trilha, enquanto nas crianças mais velhas e nos adultos pode-se defender a segunda trilha: o modo de compreensão quando nos defrontamos com qualquer objeto artístico tem a linguagem verbal como protótipo para que possamos apreendê-lo. Em uma das direções há um tempo cronológico, da outra provém um tempo lógico. Mas sempre há tempo, toda linguagem se constitui a partir de um dis-correr no rio do tempo. Não o tempo das várias ciências como a física, mas na acepção da subjetividade humana, isto é, da temporalidade. Vamos nos arriscar a ir um pouco mais longe das veredas do artigo anterior. À época desconhecíamos a obra de um compositor de óperas de mais de dois séculos atrás, também pensador de renome em outros saberes, inclusive a educação infantil, cujas obras teóricas sobre a música e o teatro constituem um volume de quase duas mil páginas em papel-bíblia: Jean-Jacques Rousseau (1995). Também não havíamos tido a oportunidade de outra vez observar um objeto científico primordial para a psicanálise: um bebê. Além disso, nos últimos anos outros colegas que igualmente se dedicam a decifrar os mistérios da música por meio da psicanálise, criaram textos que incitaram vários novos atalhos. Novos escritos do mencionado Didier-Weil (2010, 2011), livros e artigos de Bertelli (2012), Chaves (2012), Mattos (2011) e Vivès (2009, 2012). Também devo a uma colega do CPMG a sugestão, advinda de uma palestra sua, de um ovo de Colombo existente na obra daquele ouvido de chumbo que era o próprio Freud: o famoso fort-da repetido por seu neto de um ano e meio, como seria natural em uma criança dessa idade, não era dito, mas entonado como se fosse um canto (MELLO, 2012), uma elegia ou uma ode a ausência da mãe. Outra colega — antiga ex-aluna — sugeriu a escavação dos usos do fort-da ao longo dos seminários de Lacan. Contudo, no atual percurso, várias vezes retornamos diretamente ao texto freudiano em sua primeira tópica, principalmente no aspecto econômico. Com tantos indícios, corre-se o risco de trazer mais dúvidas e problemas, ou que a nova vereda desapareça na terra escaldada do sertão. Ou, como se diz em outra anedota, será que a galinha é apenas um meio que o ovo encontrou para produzir outro ovo? Do choro aterrador aos gritinhos da bebê Durante os dois primeiros meses de vida o choro de um bebê é desesperador: gritos e berros altíssimos, muitas vezes até a exaustão ou que o próprio bebê se engasgue neles. Reflete seus incômodos e desconfortos físicos. Nasceu com seu intestino estéril e precisa ser povoado de bactérias simbiontes. Surgem todos os tipos de cólicas. Trata-se de uma de uma etapa normal do desenvolvimento, imprescindível aos seres humanos. A ela se somam: eventuais problemas alimentares, otites, faringites, assaduras, entre outras patologias. Melanie Klein salientou como para um bebê pequeno, sem noção de continuidade no tempo, as dores e os desconfortos são vividos como absolutos, vivenciados como ameaça de aniquilamento vinda de fora e potencializados pela pulsão de morte vinda de dentro. Mas, para um bebê saudável e criado em um ambiente cujo holding e handling sejam minimamente satisfatórios, essas experiências aterrorizantes são em menor grau e duração que aquelas prazerosas e que reforçam a pulsão de vida, entre elas, o contínuo chamamento à vida feito pela mãe e por outros que cuidem do bebê. Aconchego, apertos, o cheiro da mãe, o calor de seu corpo, toques, cuidados de limpeza, todas as formas de contato físico que narcisam. Sem esquecer o contínuo olhar dos que cercam. Táteis ou visuais, contatos sempre acompanhados de alguma voz: acalanto, chamamento pelo nome ou apelido do bebê, mesmo que cheguem até ao desabafo de irritação ou desespero pelo cansaço dos cuidadores. Mesmo nesse caso, que também significa investimento afetivo, consiste numa convocação à vida. A voz materna e de outros ao redor podemos designar de pulsão invocante, “a experiência mais próxima do inconsciente” (LACAN, 1998). Passados esses primeiros meses um bebê começa a apresentar novos tipos de “choro” e qualidades vocais: manha, birra, controle, chamar atenção dos outros mesmo quando está satisfeito, embora ainda continuem a ocorrer episódios do choro desesperador inicial. Em uma bebê de três meses e meio observamos pessoalmente o surgimento de outro estilo vocal, cuja existência já há algum tempo foi corroborada pela mãe. Mesmo com outras pessoas e um cão presentes, passou dar frequentes e sucessivos gritinhos sem qualquer propósito de chamar a atenção de alguém. Sempre assaz satisfeita consigo mesma, não precisando olhar para os outros (inclusive um cachorro), estava muito feliz, talvez pela descoberta de que agora era a dona, ou pelo menos sócia, da pulsão invocante. A passividade diante da ausência da mãe, que um choro ou berro alto e angustiante funcionavam concretamente a trazendo de volta, fora substituída pela atividade dos gritinhos. A introjeção do objeto permitia agora mantê-lo dentro de si, independentemente de olhar ou ser concretamente olhada por alguém no meio ambiente. Descrevendo o fort-da de seu neto, Freud nomeou de impulso de apoderamento (Bemächtigungstrieb) essa passagem da passividade à atividade diante da ausência da mãe (FREUD, 2010, p. 173). Agora a bebê era poderosa. Pelo menos por um tempinho e de qualquer modo sabendo-se rodeada de outras pessoas no recinto. Prestando atenção, via-se que os gritinhos se compunham de uma sucessão de vogais, sem sons palatais, linguais ou mesmo labiais que os cortassem. Sucessão de vogais executadas em intensidade e acentos variados. Seria um exagero chamar de canto os gritinhos da bebê. Não apresentavam a característica básica de uma linguagem: ser uma combinatória infinita a partir de elementos finitos. Mais parecia algum tipo de treino vocal de aula de canto. Mas nos fez refletir sobre a tese esboçada acima sobre o surgimento cronológico da palavra a partir da música. Sobre o nascimento da voz No intuito de fundamentar esta tese recorremos a um autor que desconhecíamos à época do primeiro artigo: Rousseau. De seu Ensaio sobre a origem das línguas (2008), publicação póstuma de 1781 e o mais extenso de seus vários textos sobre música, Rousseau é frequentemente citado como defensor da ideia de que a música é a origem da palavra. A leitura cuidadosa do texto mostra que Rousseau não fez tal afirmação. Escreveu o pensador: [...] a paixão faz falar todos os órgãos e confere à voz todo o seu brilho; assim os versos, os cantos, a palavra tem uma origem comum [...] dizer e cantar eram outrora a mesma coisa [...] ambas tiveram a mesma origem e a princípio foram a mesma coisa [...] (ROUSSEAU, 2008, p. 145-146). Mas, se dizer e cantar no princípio eram o mesmo, podemos sugerir que anterior a dois termos existe outro. Interpreta Derrida, no extenso comentário de sua Gramatologia (2011) ao Ensaio: “Não há música antes da linguagem. A música nasce da voz e não do som. Nenhuma sonoridade pré-linguística pode, segundo Rousseau, abrir o tempo da música. Na origem há o canto” (DERRIDA, 2011, p. 239). Nesse autor parece haver uma confusão entre canto e voz. Canto implica o conceito comum a qualquer linguagem de se constituir no tempo a partir de uma combinação infinita de elementos finitos. Voz que, sendo mais de que um mero som como são os ruídos da natureza ou aqueles emitidos por outros seres vivos, por sua vez já é por todos acolhida no conhecimento de que há um ser humano como emissor. E aquele ser humano específico, não qualquer outro, no que o choro dos primeiros meses estava muito mais próximo de um som. Contudo a voz isoladamente se compõe de elementos mais simples do que seria um canto, simples como são as sequências de vogais e acentos dos gritinhos de um bebê. Além do tempo e da combinatória, para se tornar canto, falta ainda algum outro elemento essencial. Observando a bebê, também percebemos que os gritinhos eram acompanhados por uma sacudidela do tronco e movimentos dos braços e pernas, o que já fora observado em crianças de mais de um ano, que, ao esboçarem uma fala mais eloquente, além da mímica facial, gesticulam e muitas vezes contraem o corpo todo. Desse modo, concluímos que ainda não existe um canto apenas vocal isolado do resto do corpo em uma criança pequena. A faringe ainda não existe como substrato independente. Do mesmo modo, a expressão corpórea generalizada induz a pensar que seja a origem da dança. A preferência dos autores em estudar a pulsão invocante a partir do canto (Vivès) ou da dança (Didier-Weil) resulta bem mais em uma eleição individual, e seus estudos são complementares. Igual crítica pode ser feita às citações acima de Rousseau e Derrida. No princípio não era apenas a voz, mas a paixão “que faz falar todos os órgãos” (ROUSSEAU, [1781] 2008, p. 145). Ou melhor, no princípio era a pulsão invocante. Capítulos antes de afirmar a origem comum entre dizer e cantar, Rousseau abre seu Ensaio dissertando sobre a importância da paixão para o nascimento da linguagem humana: [...] se sempre tivéssemos tido apenas necessidades físicas, teríamos perfeitamente podido não falar nunca, e nos entendemos muito bem apenas com a linguagem do gesto [...]. Não foi a fome nem a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que arrancaram as primeiras vozes (ROUSSEAU, [1781] 2008, p. 97 e 104). Glosando essa citação por meio dos conceitos freudianos, pode-se interpretá-la como a diferença entre necessidade e desejo, entre instinto e pulsão. Além de se satisfazer autoerótica ou narcisicamente, como tão bem descobriu Freud nos Três ensaios (FREUD, 1978), a pulsão deixa um excedente, uma sobra que independe da necessidade física que a reative. Sobra também responsável pelos excessos da paixão, a hybris que tanto horrorizava os gregos antigos. Posteriormente Freud concluiu através do conceito de apoio (anáclise) que em nossa espécie necessidade e desejo sempre se contaminam. Não se come racionalmente só para se alimentar, o tigre talvez o faça. Comemos porque é gostoso, usualmente bem mais do que o organismo precisa. Também existe nos humanos o oposto, do qual um tigre em natureza jamais sofrerá: anorexia e bulimia. Lacan vai além, não por acaso, em um dos trechos em que comenta o fort-da, acrescentando o termo “desejo” a fim de enfatizar: [...] que não existe estado originário de necessidade pura. Desde a origem, a necessidade tem sua motivação no plano do desejo, isto é, de alguma coisa que se destina, no homem, a ter uma certa relação com o significante (LACAN, 1999, p. 227). E os gritinhos o que eram? Talvez um pouco autoeróticos, pelo puro prazer na produção de sons pela faringe, e não mais apenas de choros de angústia e privação. Talvez um tanto narcísicos por esboçarem o início da unidade de um eu corporal (os movimentos associados do corpo todo) que, como postulou Freud, é o modelo para o eu psíquico. Uma espécie de autonarcisamento auxiliando a constituição de um todo. E como para Klein o desenvolvimento do eu e do objeto é paralelo, os gritinhos também seriam um pouco objetais por já conter em si um tanto da pulsão invocante, isto é, um tanto da mãe internalizada. Não mais mero som, mas produto de uma voz, isto é, de uma subjetividade, já um pouco objetal, e não mais apenas pré-objetal, uma vez que mãe já não seria apenas o seio kleiniano ou uma função, mas percebida como um alguém coemissor da pulsão Já a contínua repetição nos lembra o fort-da e a domesticação da pulsão de morte em favor da libido. Da voz ao canto Em Além do princípio do prazer Freud ([1920]2010) descreve com detalhes a origem da expressão fort-da em seu neto de ano e meio. Escreve que se tratou de mais do “que uma observação ligeira, pois durante algumas semanas estive com a criança e seus pais sobre o mesmo teto” (FREUD, 2010, p. 171). Assim justifica o relato que antes do jogo do carretel acompanhado desse termo duplo, separado em duas sílabas por uma forte consoante, observara que o garoto realizava um ato mais simples, acompanhado por uma sequência somente vocálica: Esse bom menino tinha o hábito, ocasionalmente importuno, de jogar todos os pequenos objetos que alcançava para longe de si, a um canto do aposento, debaixo da cama, etc., de modo que reunir seus brinquedos não era coisa fácil. Ao fazer isso ele proferia com expressão de interesse e satisfação, um forte e prolongado o-o-o-o, que no julgamento da mãe e no deste observador, não era uma interjeição e significava “fort” [“foi embora”]. Afinal percebi que era um jogo e que o menino apenas usava todos os seus brinquedos para jogar “ir embora”. Um dia pude fazer a observação que confirmou minha opinião [...] (FREUD, [1920]2010, p. 174). As expressões “afinal percebi” e “um dia” levam a concluir que Freud levou um bom tempo observando o comportamento de seu neto, talvez mais do que algumas semanas, sendo possível que o menino tivesse menos, talvez bem menos, que um ano e meio, embora seguramente maior que um bebê de três meses e meio. O que há de comum ao relato de Freud e ao da bebê mencionada neste artigo, é o primeiro exercício da voz por meio das vogais No caso da bebê, associada a movimentos difusos do corpo todo, quando em um menino bem mais velho já havia uma escolha de uma vogal e de um ato motor específico. O que remete ao comentário de Rousseau (2003, p. 107) de que “em todas as línguas, as exclamações mais vivas são inarticuladas; os gritos, os gemidos são simples vogais [...]”. Finalmente no neto de Freud surgiu o jogo do carretel. Primeiro o objeto era atirado para dentro do berço com cortinado, de modo que desaparecia do olhar do guri, o que era acompanhado pelo o-o-o-o. Então, em um segundo momento, o menino puxava de volta o carretel e dizia da. Surgira o fort-da completo, com a característica de que “sem dúvida o prazer maior estivesse no segundo ato” (FREUD, [1920]2010, p. 174). Logo, como colocou Didier-Weil, “trata-se de examinar o em que consiste a mutação introduzida pela passagem do par sonoro “O-A” ao par fonemático “Fort-Da” (DIDIER-WEIL 2011, p. 12). Essa observação de Freud, seu único relato direto de uma criança pequena, ainda pouco mais que um bebê, foi comentada mil e uma vezes na história da psicanálise. Aqui interessa a leitura atenta do texto freudiano por uma colega psicanalista, de que, como seria natural em uma criança dessa idade, o fort-da não era dito, mas entonado como se fosse um canto (MELLO, 2012), uma elegia ou uma ode à ausência da mãe. As simples sequências de vogais e acentos dos gritinhos de um bebê são muito mais que um som, são algo decididamente humano: uma voz. Não porque o latido de um cão seja menos som que o gritinho de um bebê, mas porque este cria sequências variadas de vogais e acentos, enquanto aquele só varia a altura do som e a duração. Contudo, para ser um canto, ainda falta algo: o talhe. Para evitar confus&atiatilde;o com outros termos psicanalíticos, criamos um próprio. Denominamos de talhe da voz o que na prosa de um adulto são os sons das consoantes, o da do “fort-da”. O “f” do fort, labial, ainda é uma diferenciação muito tênue da vogal, já o “d” do da, feito de língua e palato, corta duramente o som, produzindo uma intensidade de melodia e ritmo muito maior que vogais sozinhas1. O o-o-o-o, por meio da pulsão invocante, permitia que o menino se assenhorasse da ausência da mãe de tal forma que, como relatou Freud, ele “nunca chorava quando a mãe o deixava durante horas, embora fosse muito apegado a ela, que não só o amamentara como dele cuidara sem ajuda de outras pessoas” (FREUD, [1917]2010, p. 173). Mas era saudando a volta do carretel com um alegre “da” (“está aqui”) que ocorria uma reviravolta completa. A ausência da mãe fora completamente deslocada para outro objeto, que ativamente sob seu controle executava sempre o oposto, sempre retornava. A elegia permitia suportar a ausência da mãe. A ode executava o impulso de apoderamento transformando a falta em triunfo, uma das três defesas maníacas descritas por Klein. Prazer mais duradouro e sem a necessidade de mais alguém no meio ambiente, como definiu Winnicott (1998), a internalização de um objeto bom ou a posse de um objeto transicional, que permitem à criança a capacidade de estar só e de brincar sozinha. Foi mencionado que, no caso da bebê, já ocorria um exercício de sons vocálicos e o aparecimento de uma subjetividade que transformam o som em voz. Mas ainda faltava algum elemento que transformasse a voz em canto, tal como Freud descreveu quando o o-o-o-o foi talhado pelo da. A inserção do talhe forma o elemento que torna em canto a voz. Mas de onde viria a força que corta uma sequência vocálica, primeiro de modo mais suave e depois com a violência do da? E que torna a ausência externa em presença interna? Um canto de Eros e Tanatos A primeira consoante é o “m”, som bilabial que surge a partir da sucção do seio. Mas de um seio que cada vez mais se afasta. Entre a fonte e o objeto da pulsão, em que da distância que é sentida pelo bebê, nasce a consoante, o talhe inicial da voz. Em todos os idiomas também se diz que a primeira palavra é “mã” e logo a repetição da sílaba em mã-mã, o que também representa o reconhecimento da mãe enquanto um todo e separada do bebê. Apesar disso, trata-se mais de uma função que tudo supre, não o conceito de outra pessoa independente. Os bebês transferem essa função para outros com extrema facilidade se forem obrigados por uma ausência mais prolongada da cuidadora principal. O mã aparece por volta dos cinco ou seis meses, mas claro que em crianças de todas as idades os períodos de desenvolvimento podem ter grandes variações, para mais ou para menos. O surgimento dos demais sons consonantais é paralelo ao nascimento dos dentes, que vai dos incisivos centrais inferiores aos seis meses, até aos segundos molares superiores aos dois anos. Sempre com grandes variações individuais. Há recém-nascidos já com algum dente; algumas crianças iniciam a dentição aos três meses, etc. A dentição se inclui no impressionante desenvolvimento humano nos primeiros dois anos de vida. Aos seis meses um bebê já controla como um todo a musculatura do corpo e logo começa a se virar e engatinhar. Quando falamos de musculatura estamos falando do que lhe permite aprimorar seu controle e exercer mais e melhor sua agressividade sobre o meio ambiente. Pode-se falar de um aprimoramento do impulso de apoderamento? Essa expressão, aliás, lembra um tanto a vontade de potência nietzschiana. Coincidência ou não dos termos, entramos no departamento do sadismo, tão caro a Freud: musculatura — sadismo anal. Paralelamente soma-se o nascimento dos dentes, que permite a ingestão de alimentos cada vez mais sólidos: sadismo oral. Sadismo: deflexão da pulsão de morte em agressividade a serviço da libido. Portanto, as demais consoantes além do “m” pertencem a uma soma de Eros e Tanatos. Atirar para fora do berço os brinquedos, bem como a mordida e o talhe consonantal só é possível a partir da fusão das pulsões. O canto do fort-da, além do triunfo sobre a mãe, também era mortal vingança porque, como escreveu o poeta Mário Quintana em Da paz interior: “...não há nada que dê um sono mais tranquilo que o prazer de uma vingança bem executada”. No breve relato de Freud a propósito de seu neto, pode-se ver a brincadeira e o canto, e também relação destes com alguns dos processos sublimatórios. Em que pese o sadismo implícito e o triunfo sobre a mãe, a deflexão da pulsão de morte e a transformação da passividade em atividade significam o prevalecimento da libido. Como descreveu Bertelli (2012), contestando chavões do tipo de que “a música é a mais espiritual das artes” ou de que é “algo sublime que proporciona paz à alma”, há que deixar à parte as teorias dessexualizantes da sublimação. Ponto de vista inicialmente proposto pelo próprio Freud, que mais tarde deu uma guinada na direção oposta. Há que ancorá-la no perverso polimorfo que é a criança. Foi no ensaio sobre Leonardo da Vinci que Freud empreendeu a virada. Enunciou ali que a sublimação não implica em uma dessexualização da perversidade polimorfa, mas ao contrário, esta seria a matéria-prima da produção sublimatória (BERTELLI, 2012, p. 62). Em relação à palavra e a voz tendo como predominância o componente libidinal para a deflexão da pulsão de morte, pode-se citar o que escreveu Freud no Tema dos três escrínios: “não há dúvida de que no sonho a mudez representava a morte” ([1913]1978, p. 295). Sendo assim, o que representaria a prevalência de puro Tanatos seria um quadro de autismo ou mutismo, não o canto do fort-da. Mas a vingança do neto de Freud já prenunciava a importância da pulsão de morte quando domesticada pela pulsão de vida para a sublimação. Assim como o sadismo oral/vocal perverso polimorfo do menino de ano e meio, tanto poderia prenunciar um personagem psicopata assassino da própria mãe, como o famoso Norman Bates no filme Psicose, de Hitchcock (baseado em um caso real), quanto o prazer de um barítono cantar e da plateia em ouvir no Otello, de Giuseppe Verdi, a tremenda ária em defesa de um mal absoluto — Credo in un Dio crudel — cantada por Iago, o vilão shakespeariano que intriga Othello até o delírio e a assassinar sua mulher. O que felizmente não ocorreu com Ernst Freud Halberstadt, o menino do fort-da, o único dos netos de Freud que se tornou psicanalista, ofício que praticou e sobre o qual publicou até bem próximo de seu falecimento aos oitenta e quatro anos (BENVENISTE, 2008). Simbólico cantado? O jogo do fort-da é comentado por Lacan em não menos que nove dos seus seminários: 1, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 11 e 14. Nos primeiros cinco seminários desta lista, além de outros autores, Melanie Klein e Winnicott são mencionados às carradas. Há todo um percurso lacaniano baseado no relato da observação de Freud sobre seu neto, para a conceituação do simbólico e de sua entrada pela criança. Aproveitemos o que nos interessa. Primeiro, no Seminário 5: – As formações do inconsciente, o uso da expressão “a existência de uma invocação” (LACAN, 1999, p. 342) designando o jogo de presença e ausência do menino, seis anos antes das breves observações sobre a pulsão invocante no Seminário 11, e configurando que: [...] a partir do momento em que a criança começa simplesmente a poder opor dois fonemas, eles já são dois novos vocábulos. E, posto que existem dois, aquele a quem eles são dirigidos, isto é, o objeto, a mãe, já existem aí quatro elementos, o que é suficiente para conter em si virtualmente toda a combinatória da qual irá surgir a organização do significante (LACAN, 1999, p. 231). Claro que Lacan se refere sempre ao modelo linguístico saussuriano, fundado na análise da linguagem verbal. Mas pouco antes do trecho acima citado, também havia assinalado que, apesar do significante, o intermediário “absolutamente essencial#8221; é “a voz” (LACAN, 1999, p. 231). A voz intrinsecamente humana é que torna possível canto do fort-da, canto que pode ser criticado por ser muito simplório e repetitivo. Mas já contém em si virtualmente toda a combinatória do simbólico, e que apenas precisará de um pouco de treino para que se torne música mais complexa. Ao se pensar em pulsão invocante, logo se pensa nas cantigas maternas e no canto de ninar. Na realidade, quando possuem algum vínculo afetivo, todos que se aproximam de um bebê acentuam o tom e a melodia da voz, mesmo que digam baboseiras. O Outro não aborda um bebê com uma fala incolor e mecânica. Se o meio ambiente for assim, não há simbólico que se instaure. E ainda se pode especular como seriam intrauterinamente escutadas a voz da mãe e todas as outras as vozes, bem como os sons do interior do corpo materno, principalmente o ritmo do coração. Como o feto acolhe esses sons quando a mãe está angustiada? Essa e muitas outras dúvidas são sugeridas pelo início dos estudos de psicologia pré-natal. A invocaçccedil;ão do simbólico pelo Outro, trazida pelo canto materno, é respondida por expressões vocálicas e finalmente por gritinhos que trazem a invocação do simbólico pelo próprio bebê. Lacan em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise assinala que, articulando o fort-da, a criança “começa a encantação” (LACAN, 1998, p. 63). Em Invocações Didier-Weil (1999, p. 10) comenta que, “por uma questão didática, seremos levados inicialmente a apresentar a invocação musical como separada da invocação significante...”. Façamos o contrário e juntemos ambas. Se o fort-da desde o início não era dito, mas cantado, e a voz na origem da linguagem é indissociável tanto da palavra quanto da música, somos obrigados torcer o conceito de simbólico além do puramente verbal. O mesmo autor em seguida escreve que “a outra face pelo qual o significante se se apossa da invocação musical é a face pela qual a linguagem, subtraindo-se à prosa, se faz poesia...” (DIDIER-WEIL, 1999, p. 11). Desde Nietzsche, em O nascimento da tragédia ([1872]1992), é debatida a origem do poético a partir da música. Logo, o que inicia é a invocação musical, é semelhante às hermas de Janus, esculturas de um só deus, que possuía duas faces: significante com faces prosa e poesia, ambas sobre uma coluna de música. Porque, desde que não seja um manual de geladeira ou um tratado de lógica, quanto mais literária, também maior a musicalidade da prosa. Muito menos subsiste qualquer poesia sem o ritmo da sonoridade das palavras (melopeia), o ritmo de apresentação das imagens (fanopeia) e o ritmo da sucessão das idéias (logopeia) (LOPES, 1995, p. 98). De Homero a Sylvia Plath, a grande poesia é feita para ser dita em voz alta como uma fórmula mágica e, mesmo os bons contadores de história infantil, com os quais tivemos o prazer de trabalhar, por meio de uma aparente prosa, encantam as crianças e ainda mais os adultos. Um “sim” maior que todos os “sins” Comumente é repetido que o ouvido é o único orifício que não podemos fechar embora sem os dedos ocorra o mesmo com o nariz. Mas como já fora assinalado pelo próprio Freud, nosso olfato é um sentido atrofiado. Didier-Weil (1997, p. 237) assinala que, quando escutamos a música, não podemos deixar de dizer-lhe um “sim” radical. “Estranheza desse sim [...] que não se deduz de uma deliberação interna que me faz escolher dizer ‘não’, coloca-nos sobre a pista do que é o verdadeiro sentido da Bejahung”. Na obra de Freud “o significado do bejahung é dizer ‘sim’, assentir concordar” (HANNS, 1996, p. 47). Mesmo que o fort-da revele como a afirmação (Bejahung), seria precedida de uma ausência ou rejeição primordial, e sobre esse fundo de falta na função significante se elabore o simbólico. Freud não podia deixar de escutar seu neto. Podia sair do quarto ou mandar o menino se calar, mas preferiu entender o que aquele cantar significava. Em seu texto sobre a denegação Freud enfatiza que não se pode conceber uma linguagem verbal, ao menos no sistema consciente/pré-consciente sem o “não”. Lacanianamente pode-se dizer que a música, enquanto simbólico e linguagem, necessita de uma ausência, de uma falta originária, da interdição, do Nome-do-pai, do falo, mas que não comporta o “não” da linguagem verbal. Um “não” que descrito pela primeira tópica freudiana pode ir desde a censura moral, passando pela a recusa consciente, até ao “não” inconsciente do recalque. Logo, há um simbólico que se ancora em uma afirmação (Bejahung), em um “sim” mais fundo que o instaurador do significante entendido tão somente como verbal. A face com a qual o significante se apossa da invocação musical é que o submete a todas as interdições até chegar à negativa verbal. Embora o talhe seja uma ferida na continuidade do som das vogais dos gritinhos, a música é a outra face de um significante que é pura afirmação e que não diz “não”. Aproveitemos outro trecho de Lacan que nos interessa. Em O desejo e sua interpretação, seminário seguinte As formações do inconsciente, é dito que: ...o Fort-da [...] esse momento que podemos considerar como teoricamente primeiro da introdução do sujeito no simbólico, na medida em que é a alternância de um par significante... (LACAN, s.d., p. 302). Introdução que se dá por um pequeno objeto explicitou no mesmo seminário o psicanalista francês é o mesmo que levou Winnicott a denominar objeto transicional, e que “é alguma coisa que está certa diante da aparição do sujeito barrado, isto é, o momento em que o sujeito barrado se interroga em relação ao outro, enquanto presente ou ausente” (LACAN, s.d., p. 302). “Diante da aparição do sujeito barrado”, logo antes este ainda não havia. Trata-se, portanto, do “momento primeiro de introdução do sujeito ao simbólico exatamente antes do aparecimento do sujeito barrado” (KRUTZEN, 2003, p. 242). A busca pela origem da música conduz a um momento, talvez instantâneo, um momento apenas mítico, e que existe uma afirmação incondicional, um sujeito ainda não barrado ou dividido, e em que ainda não existe um “não” verbal. Seja o “não” de uma a negação lógica, ou aquela consciente ou pré-consciente que evidencia uma condenação moral e/ou algo recalcado (Verneinung), seja o “não” a recusa de uma realidade (Verleugnung), seja o “não” inconscientemente realizado pelo recalque (Verdrandung), seja o “não” do que rejeito completamente em mim e projeto na realidade externa (Verwerfung). Melodia e mimese Haveria outra variante entre a face com que o significante se apossa da invocação musical e aquela da linguagem verbal? É interessante retornar a um autor muito anterior à psicanálise e seguir mais pistas a partir do Ensaio sobre a origem da linguagem. Rousseau (2008) estabelece mais uma diferença entre música e palavra: A melodia, ao imitar as inflexões da voz, exprime os lamentos, os gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos, todos os sinais vocais das paixões são de sua alçada [...] ela não somente imita, ela fala; sua linguagem [...] tem cem vezes mais energia que a própria palavra (ROUSSEAU, 2008, p. 154-155). É curioso o uso do termo “energia”, remetendo a associação com escritos metapsicológicos freudianos de mais de século e meio depois. O que traz tanta força à música e seria tão fortemente retirado da linguagem verbal? No Ensaio várias respostas são formuladas. Rousseau (2008) compara a música com a pintura. Naturalmente se refere à pintura figurativa que conhecia no século XVIII. Assim como uma cor sozinha, um som solitário nada representa e a pintura não é somente a arte de combinar cores agradáveis, a simples combinação de sons agradáveis também nada significa. Então, para destacar a função da melodia, retoma ao conceito da estética aristotélica de imitação (mimese). Um dos dois conceitos-chave da Poética, de Aristóteles (ARISTOTLE, 1987). A imitação não é mera cópia, como era para Platão, mas uma síntese que retira o desnecessário, alcançando a essência e universalizando o objeto. A melodia faz na música exatamente o que desenho faz na pintura; é ela que representa os traços e formas, cujos acordes e sons são apenas cores. [...] Portanto, assim como a pintura não é a arte de combinar cores de uma maneira agradável à vista, a música não é a arte de combinar sons de maneira agradável ao ouvido. [...] Ora, o que faz da pintura uma arte de imitação? É o desenho. O que é que da música faz uma outra? É a melodia. (ROUSSEAU, 2008, p. 149-151). Se na pintura tal como era reconhecida no século das luzes o desenho forma imagens visuais que permitem ao espectador ser atingido e emocionado pela arte, na música: ...os sons, na melodia, não agem apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos; é assim que excitam em nós movimentos que exprimem, cuja imagem reconhecemos (ROUSSEAU, 2008, p. 157). O desenho está para a pintura assim como a melodia está para a música, é a forma que concebe unidade a obra. Completa-se a identidade com a Poética. A mimese é possibilita que a obra atinja o segundo item indispensável à arte: a catarse. Para Aristóteles uma descarga afetiva intensa trazida pelo o que era visto no palco da antiga tragédia, através da qual o espectador saía do espetáculo reconciliado consigo mesmo. Freud conhecia os escritos do tio de Martha, Jacob Bernays (ARISTOTLE, 1987, p. xvi), ilustre helenista do século XIX, que propôs uma leitura psicológica para o efeito da catarse, que foi reciclada pela psicanálise a partir dos Estudos sobre histeria. Daí se explica a origem da interpretação de que a catarse seja fruto da identificação do espectador com o conteúdo da obra, permitindo uma grande descarga pulsional. Essa seria uma das explicações pela qual a melodia, enquanto mimese traz cem vezes mais energia à música do que traz a palavra. Ao menos da palavra meramente informativa, da palavra não poética — da qual sempre trazemos a caricatura do manual de geladeira —, desprovida de imagem e musicalidade. Onde Rousseau não arrisca, assim como outros pensadores sobre a música também não, é o que na música seria representado por meio da mímese. Geralmente autores posteriores saíram com chavões e generalidades que pouco ou nada explicam, como “estados básicos da alma”, “o afeto em potencial”, “não a representação, mas a vontade em si mesma”. Talvez seja outra série de platitudes, a que se chega por meio da psicanálise: “afirmação (Bejahung) essencial”, “ausência ou rejeição primordial”, “momento primeiro de introdução do sujeito ao simbólico exatamente antes do aparecimento do sujeito barrado”. Mas há um traço comum nos chavões de ontem e de hoje: o que é genericamente evocado pela m&uacutuacute;sica, e bem por toda arte, cada um preenche, completa ou representa para si mesmo através de lembranças próprias. A arte desencadeia séries de associações conscientes e inconscientes que se espalham como uma teia, que seria infinita tal como o inconsciente, se a condição humana, as exigências práticas da vida e o recalque não impusessem um limite (LOPES, 1995). Há outro conceito da poética aristotélica, não utilizado por Rousseau, que se pode incluir: o mythos, traduzido em nosso idioma como “enredo”. Ele é a forma pela qual é conferida unidade e permite a mimese. Assim, toda melodia discorre ao longo do tempo parecendo contar uma espécie de história. Pondo de lado toda tentativa de música que se proponha diretamente descritiva, há uma narrativa, mas de outro tipo, diferente daquela contada verbalmente, mas que também possui começo, meio e fim. Uma narrativa mais sintética, mais condensada. Como o fort-da, que Freud percebeu ser muito mais que um jogo bobo de um menino com um carretel, mas a síntese de toda uma história da relação entre dois seres humanos. O fort-da estava para a música assim como nossos sonhos individuais estão para os símbolos mais universais. Nossos sonhos só têm interesse para nós mesmos e para nosso psicanalista. São muito aborrecidos para terceiros. Não foram reunidos em um mythos em uma síntese que os universalize desencadeando teias de associações conscientes e inconscientes ligando a história de cada um ao universal (LOPES, 2007). Retirando o supérfluo e condensando a energia livre em uma descarga muito mais intensa, o mythos permite que se produza a catarse em um público maior que um avô e seu neto. Harmonia e recalque E por falar sobre o papel do recalque para a distinção entre prosa não poética e poesia, a leitura do texto de Rousseau pede novamente ajudar para uma analogia sobre um pouco de sua origem. Desnecessário repetir tudo que foi escrito sobre o tema por Freud e seus sucessores. Serão apenas alguns acréscimos a uma das descobertas mais originais do fundador da psicanálise Depois de enaltecer a importância da melodia, que “tem cem vezes mais energia que a própria palavra” (ROUSSEAU, 2008, p. 155), o autor se coloca acerbamente contra a função e o uso da harmonia. Crítico passional da música francesa de sua época, e de Rameau em particular, para o pensador, os excessos da harmonia, algo em si já artificial e intelectualizado seria uma das causas da degeneração da música na França. A harmonia: ...ao colocar entraves à melodia, ela retira-lhe a energia e a expressão, ela elimina o acento apaixonado para a ele substituir o intervalo harmônico [...] ela elimina e destrói multidões de sons ou de intervalos que não entram em seu sistema (ROUSSEAU, [1781] 2008, p. 155). A observação pessoal de crianças entre um e três anos indicou como a aquisição da linguagem obriga a criança a vários derivados do recalque. Espontaneamente ela dá sentidos próprios e originais aos sons e às palavras que têm de ser proibidos em funç&aatilde;o daqueles socialmente aceitos. A criança brinca com a sonoridade das palavras (melopeia), repetindo-as por puro encantamento em sua música, e não pela utilidade para comunicação. Inventa palavras novas e cria sentidos outros para aquelas velhas. Mas isso é proibido pelos adultos. Para ela a representação de palavra possui a mesma energia que a representação de coisa, o que também necessita ser aprendido pela criança que uma não é a outra ou se permanece no pensamento concreto. Também lhe é ensinado como determinadas palavras e expressões são carregadas de sentido pejorativo e condutas que precisam ser proibidas: “isso é feio”, “isso é coisa de menininha”. Natural que a grande força expressiva da linguagem infantil tenha de ser domesticada e nisso se perca grande parte da energia e da criatividade espontânea da criança. Tudo isso é precedido por uma fonte mais primeva de recalque. Há de se encaixar o que se sente e pensa em conjuntos de sons que vêm de fora, que mais do que jamais se amoldar completamente ao afeto e ao pensamento, ajuda a separar um do outro. Como descreveu Freud, o recalque em seu sentido econômico conduz a uma grande perda de energia. Só quando um tipo de linguagem verbal mais flexível, cujo sentido permanece parcialmente em aberto, podendo ser conscientemente ou inconscientemente completado por quem lê ou escuta e que recupera um pouco a origem comum com a música, é que se libera parte da energia recalcada. Então estamos no domínio da poesia, de sua fraternidade com o chiste e com a linguagem psicótica. No domínio comum ao simbólico e ao imaginário (LOPES, 2007). Compare-se com a observação de Rousseau sobre a artificialidade da harmonia, que poda multidões de sons. Além da palavra, temos de nos encaixar no sistema musical que nos é oferecido e socialmente aceito. Cada cultura e cada época produzem convenções sobre como regulamentar a música. Se por um lado possibilita o aprofundamento e a criatividade no exercício dessa convenção, por outro, além de sua artificialidade conduz a negatividade de tudo o que não se encaixa no sistema. Até o ponto da incompreensão de outros modos de regulamentação musical. Como para um ocidental frequentemente a música de outras culturas, como a hindu (legítima, não pastiches ocidentalizados) é incompreensível, e mesmo experimentos no próprio ocidente, tal o serialismo ou o dodecafonismo, são mais que inaudíveis, são fontes de angústia. Mesmo na tradição ocidental, em que se diz que o pós-Renascimento é em grande parte continuador da Antiguidade greco-romana, o pouco que foi recuperado da música grega antiga soa estranhíssimo e não musical aos ouvidos contemporâneos. Conclusão: repetição, ritmo e sexo Deixando de lado os chavões como “a música é a mais espiritual das artes” ou é “algo sublime que proporciona paz á alma” e estabelecendo sua fonte na sexualidade infantil com sua perversão polimorfa, há muitas outras possibilidades de compreensão da importância da música para a sublimação. Mas se até então estávamos no privilégio de Eros, reviremos para seu irmão Tanatos. Descrevendo o fort-da, Freud tamb&eaeacute;m lançou o olhar dos psicanalistas à ligação entre a repetição executada por uma criança em seu brincar, com a repetição que ocorre também quando ela exige que uma história favorita seja infinitamente repetida nos mínimos detalhes. Dessas descrições Freud aprofundou sua pesquisa sobre a compulsão à repetição, fonte mais aguda e clínica para sua ideia da existência de algo além do princípio de prazer: uma pulsão de morte. Ora, é constatação que independente do gosto pessoal, todo ouvinte repete muitas vezes suas músicas favoritas. Aliás, seria uma função essencial da música: ser sempre repetida. Mas não de uma repetição que surge numa psiquê já cindida pelo recalque, logo uma repetição quase sempre rotulada de patológica, e sim uma repetição que se possui uma vertente na pulsão de morte. Logo, naquilo que é manifestação do não ser, também é uma repetição do momento primeiro de introdução do sujeito ao simbólico, exatamente antes do aparecimento do sujeito barrado. E como todo momento mítico originário uma fonte da pulsão de vida. Talvez igualmente a repetição explique a importância de um componente essencial à música, sobre o qual curiosamente Rousseau não disserta: o ritmo. Parte essencial da música, o ritmo já foi interpretado como sendo desde uma rememoração dos batimentos cardíacos da mãe escutados pelo feto e pelo bebê, quanto associado à ritmicidade do ato sexual. Mas acima de tudo trata-se de repetição. Aquela em que Eros se sobrepõe a Tanatos, domesticando-o, sem negar o que todo sexual também possui de pulsão de morte. Embora tenhamos deixado de lado a relação entre música e mito, descrita em suas Mitológicas, nos apropriamos de uma citação de Lévi-Strauss (2013) em seu texto sobre Rousseau, na epígrafe do presente trabalho. Nessa citação coloca-se a música como superadora da dicotomia entre corpo e alma, aprofundada no ocidente desde Platão, reforçada pelo cristianismo e por Descartes, e coetânea de toda cultura desde a antiga Grécia. Dicotomia em realidade universal, visto que o ser humano e sua cultura não podem existir sem recalque. Tudo o que mesmo por instante supera esse recalque rememora a sexualidade originária. Mesmo na mais casta das cantatas de Bach. Não é à toa que desde Platão, passando por vários autores fundantes do cristianismo e por todos os fundamentalismos atuais, todos os dualismos temem e censurem alguma modalidade ou a música até a música como um todo. A citação acima serve para concluirmos que, sendo a música um momento antes da cisão, antes do recalque, antes do sujeito dividido, também é rememoração, a revivência do momento mítico em que corpo e alma eram um só, um todo de pulsão. Referências ARISTOTLE. Poetics. Indianapolis, Cambridge: Hackett Publishing Company, 1987. 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Professor Titular II do curso de Graduação em Psicologia e Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica da Universidade Estácio de Sá (UNESA). 1 O que denominamos de labial seria mais corretamente designado como labiodental, mas no caso descrito da bebê ainda não havia nascido nenhum dente. Do mesmo modo a descrição ‘de língua e palato’ também seria mais corretamente designada como linguodental, mas consideramos que no ‘da’ o palato é muito mais importante que os dentes para a produção do som. Também por analogia mantivemos no texto a descrição mais rudimentar em vez dos termos corretos.
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