Resumo
O homem leão, uma escultura totêmica datada de 40.000 anos atrás, até o momento objeto artístico mais antigo da humanidade. A revolução do paleolítico superior, era em que, de acordo com os arqueólogos especialistas, nasceram: linguagem falada, música, arte, religião e uma sociedade maior e mais complexa. De acordo com esses especialistas, não influenciados pela psicanálise, o surgimento da metáfora teria sido o portador dessa revolução. Utilizando conceitos psicanalíticos pode-se ver o início do inconsciente dinâmico, recalque e angústia. A arte das cavernas como a forma de aplacar a percepção da morte pela religião. Assim levando aos estudos mais recentes sobre totemismo e xamanismo. Especialistas em arte das cavernas interpretam as criaturas meio animais como seres metamórficos, mediadores entre este mundo e o outro. No referencial psicanalítico, podem ser interpretados como operadores da transformação do animismo e sua psicose latente num totemismo mais estável e na neurose.
Palavras-chave: Totemismo, Animismo, Nascimento da metáfora, Arte pré-histórica, Linguagem verbal, Música.
Não há dúvida de que a arte não começou como arte pela arte.
Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos
que estão hoje, em sua maior parte, extintos.
E entre eles podemos suspeitar da presença de muitos propósitos mágicos.
(v. Reinach, ‘L’Art et la Magie’.
Na opinião de Reinach os artistas primitivos,
que deixaram as esculturas e pinturas de animais nas cavernas francesas,
não desejavam ‘agradar’, mas ‘evocar’ ou conjurar [...]).
S. Freud. Totem e Tab)
Introdução: viajando no passado de cem a quarenta mil anos
Na nota editorial de sua tradução de Totem e tabu, Strachey relata que Freud em pessoa lhe afirmara ser esse o seu livro mais bem escrito. Até o final de sua vida, as ideias nele expostas foram zelosamente mantidas e aperfeiçoadas por Freud.
Entre as muitas controvérsias suscitadas pelo criador da psicanálise, talvez as teses de Totem e tabu sejam aquelas as mais polêmicas entre os próprios psicanalistas. Muitos a elas se referem como um ‘mito freudiano’. Ao longo de toda a sua obra, por exemplo, Melanie Klein só cita o livro como vaga referência bibliográfica e sempre em notas de rodapé.
Fora do meio psicanalítico a aceitação ficou ainda mais restrita. Alguns, como Lévi-Strauss e Bataille, endossaram e até validaram algumas das ideias, mas jamais o todo do livro de Freud.
A nova datação pelo carbono 14 de uma pequena escultura pré-histórica, mais conhecida como o homem leão de Hohlenstein Stadel, a colocou sendo o objeto artístico mais antigo da humanidade, pelo menos até o presente. Fato divulgado até mesmo pela grande mídia, como a popular National Geographic, a idade da estatueta passou de 30.000 para 40.000 anos atrás. Inquestionável que se trata de um totem, meio humano e meio animal. Mas desde a primeira a primeira reconstrução da estatueta, em 1970, importância do estudo do totemismo e xamanismo na pré-história já vinha tomando grande impulso.
Infelizmente os arqueólogos especialistas no estudo do nascimento da mente e da arte, bem como da religião e da linguagem humanas, fundamentam-se sempre em referenciais não psicanalíticos. Felizmente, por outro lado, ao nos fornecerem outras ideias e mais dados, permitem construir uma ponte, desde sua compreensão dos primeiros seres humanos, até nossas especulações freudianas.
Não se trata de validar como um todo Totem e tabu, apenas propor novas conexões com algumas das teses do livro. Contudo, as novas descobertas indicam que várias ideias de Freud, há mais de século, iam em direção confiável.
O que é o homem leão, de Hohlenstein Stadel?
O homem leão é uma pequena escultura pré-histórica com a altura de 29,6 centímetros. Foi toda esculpida no marfim de um unico dente de mamute por meio de uma pedra lascada. Os fragmentos da estatueta foram descobertos em 1939, na caverna conhecida como Hohlenstein Stadel, localizada nos Alpes Suábios, ao sul da Alemanha.
Devido ao início da Segunda Guerra Mundial o estudo dos fragmentos teve de ser deixado de lado e acabaram ficando esquecidos por trinta anos. Só então a estatueta começou a ser refeita. Foi quando cerca de 200 fragmentos começaram a revelar uma forma humana com cabeça de animal.
Assim que o primeiro trabalho foi publicado em 1970, pelo Dr. Joachim Hahn, causou furor no meio especializado. Mas ainda era indefinido se a cabeça era de urso ou de um felino. Na década seguinte mais pedaços foram descobertos e em 1989 a cabeça pôde ser completada. Surgiu, então, a figura de um ser humano com cabeça de leão (Cook, 2013, p. 28).
A primeira datação por carbono 14 sugeriu a idade de 30.000 anos. Nova e mais precisa datação em 2013 revelou 40.000 anos. Tal descoberta ganhou manchetes de jornais no exterior e foi capa interna da famosa revista National Geographic, inclusive em sua edição brasileira (Walter, 2015).
Trata-se do primeiro ou segundo objeto artístico mais antigo da espécie humana. O primeiro teria sido encontrado na caverna de Blombos, na África do Sul, e é um pequeno pedaço de ocre vermelho, onde aparecem linhas retas paralelas cortadas em diagonal, datado entre 65.000 e 75.000 anos. Mas é discutido se não se trataria apenas de um exercício para lascar pedras. Já a estatueta claramente foi feita por mãos humanas misturando formas com uma finalidade simbólica. A atual moradia desse ser híbrido é hoje um museu em Ulm, na Alemanha.
Os conceitos atuais de arte não podem ser inteiramente aplicados a um objeto tão antigo quanto o homem leão. Mas é inquestionável que a estatueta é uma combinação de duas formas da natureza numa terceira que jamais existiu, a não ser pela imaginação. E que não possuía uma utilidade prática facilmente explicável, tal uma pedra lascada ou outro objeto cortante utilizado para caça. Objeto de culto? Amuleto? Utilizado por um xamã como símbolo de seu poder? Tudo isso possivelmente, e talvez muito mais.
Além da combinação de homem e animal, nos braços há o talhe de sete linhas paralelas horizontais. Podem ser associadas com linhas semelhantes em pinturas pré-históricas de cavernas. Ao mesmo tempo também podem representar: pintura corporal, tatuagem, cicatrizes ou marcas com fogo. Seja como for, as linhas revelam a estatueta como um objeto intencionalmente dotado por seu criador de ainda mais sentidos simbólicos.
Mas será um homem leão? Os leões europeus daquela época, hoje extintos, não são os leões modernos que conhecemos. Era o ‘leão das cavernas’ eurasianas – cientificamente batizado com o belíssimo nome de Panthera leo spelaea. Uma subespécie extinta de leão que viveu na Europa entre trezentos e dez mil anos atrás. Esse animal foi provavelmente um dos maiores felinos que já existiram. Era em média 25% maior que os leões e tigres modernos, com comprimento de 3,7 metros (Wikipedia, 2015). Sua extinção é atribuída a mudanças climáticas. Mas é muito provável que os seres humanos tenham tido um grande – ou até principal – papel.
Só que há um detalhe: o leão das cavernas macho não tinha juba, assim como tampouco a cabeça da estatueta. Esse fato não impediu aos especialistas com facilidade decidir que se tratava de um homem leão. Mas o peito da estatueta continua incompleto, sem que se saiba se é masculino ou portava seios. E, por enquanto, não foi possível reconstruir os genitais. A estatueta evoca um ser musculoso e potente. Entretanto, isso não é garantia da identidade sexual. Outra estatueta antropomórfica, agora de origem mesopotâmica e de calcário, bem mais jovem, só de cinco mil anos atrás e muito bem preservada, conhecida como leonesa Guennol, claramente apresenta: cabeça sem juba de leoa, genitais femininos e uma musculatura de super-halterofilista.
A paleontóloga e arqueóloga Elisabeth Schmid defendeu que a estatueta de Hohlenstein Stadel se trata da figura de uma mulher leão (Cook, 2013, p. 30). Até agora não se chegou a um consenso, exceto o de provisoriamente chamá-la pelo nome de ‘humano leão’ - Löwenmensch, que no idioma alemão pertence ao gênero neutro. Em português algo semelhante a ‘pessoa leão’ (leon person).
Mais recentemente, em outra camada escavada, uma segunda estatueta de marfim de um ‘humano leão’ foi descoberta em Hohlenstein Stadel. Um objeto menor e bem mais tosco. Dá a impressão de estar bastante gasto por ter sido muito usado. Igualmente impossível saber o sexo. Foi datado entre 33.000 e 31.000 anos de idade.
Não foi o único objeto figurativo encontrado na cavada escavada, o que levou o escavador a provisoriamente especular a favor de práticas xamânicas (Cook, 2013, p. 37).
Feliz Freud, o primeiro objeto artístico da humanidade, até o presente, é simbólico e mítico: um totem. Mas não mais como simples animal totêmico, e sim já em uma fase intermediária, como os antigos deuses egípcios, que possuíam corpo humano e cabeça de animal. Desenvolvendo ideias antes expostas em Totem e tabu, escrevera Freud em Moisés e monoteísmo:
O primeiro passo para longe do totemismo foi a humanização do ser que era adorado. Em lugar dos animais, aparecem deuses humanos, cuja derivação do totem não é escondida. O deus ainda é representado sob a forma de um animal ou, pelo menos, com um rosto de animal, ou o totem se torna o companheiro favorito do deus, inseparável dele, ou a lenda nos conta que o deus matou esse animal exato, que era, afinal de contas, apenas um estádio preliminar dele próprio. Em certo ponto dessa evolução, que não é facilmente determinado, aparecem grandes deusas-mães provavelmente antes mesmo dos deuses masculinos, persistindo após, por longo tempo, ao lado destes. Nesse meio tempo, uma grande revolução social ocorrera. O matriarcado fora sucedido pelo restabelecimento de uma ordem patriarcal (Freud, [1939], 1996, p. 97).
Pobre Freud, o primeiro totem da humanidade pode ser ‘uma’ totem. Teria o totemismo surgido antes do patriarcado? Totem e tabu talvez tenha de ser reescrito, transexualmente. O próprio pai da psicanálise já intuía essa possibilidade. A tese de um período dominado pelo matriarcado ter antecedido o patriarcado, mencionada acima em um dos últimos textos de Freud, já aparecera vinte e seis anos antes em Totem e tabu.
Numa frase um tanto desconexa (ao menos na tradução inglesa) com o que vinha sendo discutido – o papel dos irmãos ao fundar o totemismo – escreve Freud:
Aqui, também, talvez esteja o germe da instituição do matriarcado, descrita por Bachofen [1861], que foi por sua vez substituída pela organização patriarcal da família (Freud, [1913] 1978, p. 144, tradução do autor).
Como ficaria a função do pai? A grande revolução do paleolítico teria ocorrido no matriarcado, e não na passagem para o patriarcado? E teremos de cuidar que Löwenmensch não acabe parecida com a grande mãe da mitologia jungiana.
O homem leão e a revolução do alto paleolítico
John Lubbock (Lord Avebury), banqueiro vitoriano, vizinho e amigo de Charles Darwin, do qual foi um forte defensor na querela da então nascente corrente evolucionista contra o pensamento religioso, publicou em 1865 o que, talvez, tenha sido o texto mais influente sobre arqueologia do século XIX: Pre-historic times, as illustrated by ancient remains, and the manners and customs of modern savages [Os tempos pré-históricos, ilustrados pelos antigos restos, modos e costumes dos selvagens modernos]. Obra pioneira, uma das primeiras a rejeitar a cronologia bíblica que dizia que o mundo teria uns meros 6 mil anos. Lubbock introduziu os termos “paleolítico” e “neolítico”, para denotar a velha e a nova idade da pedra, hoje reconhecidas como períodos-chave do passado pré-histórico.
Freud não menciona o livro de 1865, mas outro dos livros de Lubbock é utilizado em Totem e tabu: a origem da civilização, de 1870 (Freud, [1913] 1978, p. 13, 111). As citações são sobre as ideias do autor inglês sobre o tabu entre sogras e genros e sobre a origem do totemismo. Dois outros livros posteriores de Lubbock se encontram na biblioteca da casa de Freud em Londres.
O termo “paleolítico” se refere à época do predomínio dos artefatos de pedra lascada e da sobrevivência do gênero Homo enquanto caçadores/coletores. Com variações entre os diferentes locais e com superposições com outras eras, subdivide-se em: paleolítico inferior (cerca de três milhões a cerca de 130.000 anos atrás), paleolítico médio (220.000 a 45.000 anos) e o paleolítico superior (upper paleolithic) (45.000 a 10.000 anos). Após essas três eras inicia-se o recentíssimo período neolítico.
Há cerca de 500.000 anos uma primeira emigração de homídeos, denominada Homo heidelbergesis, chegou da África, berço da humanidade, até a Ásia e a Europa. Seus descendentes europeus mais famosos foram os neandertalenses. Dessa primeira migração vários homídeos conviveram e se sucederam em diversas emigrações da África ao resto do mundo. Até que há 200.000 anos surgiu, também na África, o Homo sapiens arcaico.
De acordo com provas genéticas e fósseis, o Homo sapiens arcaico, do qual os atuais humanos evoluíram, surgiu exclusivamente no continente africano entre 200.000 e 100.000 atrás. Há cerca de 70.000 anos, numa segunda grande corrente emigratória, um de seus ramos deixou a África e migrou para o resto do mundo, inclusive a Europa. Acabou por substituir as populações de homídeos das migrações anteriores, como o Homo erectus e os neandertais, provavelmente de forma nada pacífica.
Além de uma provável maior agressividade, com essa segunda leva de emigrantes, ocorreu uma revolução psíquica e cultural em todas outras áreas. Transformação que é bem documentada pelos achados encontrados em mais de uma dezena de cavernas e sítios arqueológicos europeus. Provavelmente teve seu início ainda na África. Mas nesse continente os tipos de materiais para artefatos, o clima e a ausência de grandes cavernas, não teriam permitido a permanência dos verdadeiros túneis do tempo que são as cavernas europeias.
Quanto à revolução ocorrida resume Lewis-Williams (2009):
Tudo que quero até aqui é assinalar o que se tornou conhecido como ‘transição do médio para o paleolítico superior’. Na Europa ocidental essa transição ocorreu 45.000 a 35.000 anos atrás. [...] É nítido que essa transição foi um período decisivo na história humana [...] ‘a revolução do paleolítico superior’ ou, de modo mais dramático, a ‘explosão criativa’. De repente, segundo o que aparenta para muitos pesquisadores, surgiu a arte, e passou-se a reconhecer a existência como humana (Lewis-Williams, 2009, p. 40, tradução do autor)
Na revolução do paleolítico superior ocorreu uma explosão: psíquica, linguística, musical, artística, social e religiosa. Mais de uma dezena de cavernas descobertas na Europa a partir do século XIX, famosas pelas suas pinturas, esculturas e pela riqueza de objetos encontrados, atestam essa explosão: Lascaux, Altamira, Chauvet, Dolni Vestonice, Sungir, Hohlenstein Stadel e muitas outras. Achados confirmados por outros sítios arqueológicos, como sepulturas.
Denegrida pelos sábios e intelectuais do século XIX e da primeira metade do século XX, como sendo arte ‘primitiva’, hoje é vista de modo bem diferente. Exclamou Pablo Picasso vendo as pinturas de Altamira: ‘nenhum de nós poderia pintar deste modo’ (Lewis-Williams, 2009, p. 31). Também foi Picasso quem explicou a ausência de objetos pré-históricos na África.
O que se preserva na terra? A pedra, o bronze, o marfim, o osso, às vezes, a cerâmica [...] Nunca os objetos em madeira, nunca os tecidos, nunca as peles de animais [...] O que falsifica completamente nossas ideias sobre os primeiros homens [...] Creio que não me engano em afirmar que os mais belos objetos da idade da ‘pedra’ eram em pele, tecido e, principalmente, madeira (Brassaï, 1999, p. 102, tradução do autor).
Nessa época, mais ao norte, na atual Alemanha, nasce o homem leão. Mas não o único das criaturas meio humanas e meio animais. Além da segunda escultura semelhante encontrada próxima ao homem leão, vários tipos de seres híbridos foram pintados nas muitas cavernas do paleolítico superior. Mais que um dos temas preferidos dos artistas pré-históricos, há suposições de que sejam a peça-chave para a compreensão de uma protorreligião.
Na caverna de Les trois frères, parte do complexo de cavernas de Volp, próxima aos Pirineus, uma figura enigmática parece ter sido o centro do culto. Apelidada de ‘feiticeiro’ ou de ‘deus chifrudo’, possui pernas humanas, cauda de cavalo, grandes chifres, braços e mãos que parecem estar no meio do caminho entre as de homem e animal, orelhas pontudas, rosto humano com longa barba, exceto pelos olhos que se parecem com os de uma coruja (Lewis-Williams, 2010, p. 218-220). A interpretação mais comum é que representa um xamã no meio de um processo de metamorfose.
Arte pela arte
Várias objeções são feitas quando se denomina de arte as pinturas das cavernas, bem como todos os artefatos encontrados nelas ou fora delas. Quando se fala em arte, vem à mente contemporânea a ideia de um objeto cuja única função é nos dar prazer. A crítica principal é se seria válida a utilização de um conceito moderno, para rotular o produto de homens e sociedades tão remotas: o de arte pela arte, um juízo restrito a certas culturas da Antiguidade até os dias atuais? Como seria possível imaginar o que os seres humanos de 45.000 a 35.000 atrás sentiam?
Esquece-se que a maior parte do que hoje é julgado belo ou sublime foi feita por razões utilitárias. Tomando como exemplo as criações humanas que, devido a seu tamanho, foram as mais bem preservados pelo tempo. Templos e igrejas para adorar deuses, estátuas de um imperador em todas as cidades para lembrar os súditos de seu poder, monumentos para comemorar vitórias militares. E assim em todas as demais esferas: pinturas, esculturas, cerâmicas, vitrais e outros exemplos que vão ao quase ao infinito.
Mas todos são produtos da criação humana. E os seres humanos – quando criam até algo abstrato como uma fórmula matemática e possuem algum tempo e recurso disponível, – sempre tentam gerar algo que também lhes dê prazer estético, senão prazer em algum dos sentidos, o prazer intelectual da compreensão da forma, ou ambos. A esse excesso se chama de arte. Por isso, mesmo perdida há décadas ou séculos sua utilidade estritamente prática, alguns desses objetos, para algumas pessoas, renovam esse supérfluo: o gozo estético.
Não se necessita ser católico, nem mesmo cristão, para ter prazer contemplando a igreja da Glória. Pela elegância de seu desenho arquitetônico, delicadeza e parcimônia de sua decoração externa, pela integração com o local onde foi erguida, mesmo quando ainda era quase uma rocha à beira do mar, ainda antes que se conheça seu interior, é um prédio pequeno, sendo esta mais uma de suas qualidades, e muito bonito.
Quando se nomeia as pinturas das cavernas e muitos dos objetos pré-históricos como arte, podemos afirmar sim, que é arte pela arte. Ainda mais a partir do final do século XIX, quando cada vez mais livres dos cânones greco-romanos e do eurocentrismo, artistas ocidentais de todas as áreas de criação começaram a olhar outras culturas sem o habitual ar de superioridade. Africana, polinésica, cicládica, oriental e até pré-histórica, a diversidade das criações alcançou o estatuto de arte. Desnecessário evocar a autoridade de outros grandes nomes de artistas do século XX além de Picasso e Modigliani.
Mas o que pode ser acrescentado pela psicanálise para a compreensão desse excesso, que faz com mesmo o mais utilitário dos objetos possa ser contemplado como belo, até sublime, sendo originário de qualquer cultura ou época?
Arte pela arte é o excesso investido no fazer de um objeto para além de sua utilidade. Em psicanálise esse excesso só pode ser de pulsão. Freud caracterizou a pulsão, em sua diferença com o instinto, pelo seu excesso. E por que esse excesso não pode ser usado para se fazer mais objetos ou um objeto maior, mas em ambos os casos sem qualquer preocupação pela beleza? Porque a pulsão não pode ser satisfeita apenas pela utilidade prática do objeto, pela satisfação derivada diretamente de seu uso. Porque já observara Freud que devido ao apoio (anáclise) dos interesses do eu sobre a libido, para os humanos nenhuma necessidade é exclusivamente objetiva. Mesmo quando concretamente satisfeita, a repetição continua só por prazer. O que termina por torná-la antissocial. A não satisfação direta é impedida por meio de uma força contrária: o recalque. E é o recalque, desde que o ser humano é uma criança ainda na primeira infância, que o impele à criação de fenômenos aparentemente inúteis: os sintomas.
Mas sem os sintomas não haveria o brincar. Nem do aperfeiçoamento do brincar, se proveitosamente sucedido e aprimorado pela educação. A família e a sociedade conduzem ao requinte do brincar em mecanismos psíquicos, conscientes e inconscientes, cada vez mais sutis e com maior descarga de pulsão. Assim chegamos até o mais sofisticado dos sintomas: a sublimação, para a psicanálise, principal origem da arte.
Talvez por ainda ter uma visão muito idealizada desse sintoma, Freud tenha ficado nos devendo um texto metapsicológico sobre a sublimação. Ela não resolve todos os conflitos, talvez nem a maior parte, mas é uma das características que nos torna humanos.
Para um cão um poste é só um objeto útil. Tendo as necessidades básicas supridas e algum excesso dinheiro e tempo, os moradores humanos da rua preferem que o poste seja ao menos ‘razoável’ e não enfeie suas moradias. Melhor ainda se enfeitar a rua. De que serve uma rua ‘enfeitada’? Do ponto de vista prático: para nada. Apenas porque é mais prazeroso morar numa rua bonita que numa feia. E assim, também é pelo excesso pulsional, transformado por meio da sublimação, que admiramos e sentimos prazer, independentemente de qualquer função religiosa ou xamânica que tenham tido, em contemplar as pinturas e objetos pré-históricos: são belos, até sublimes.
Redução à essência das coisas
Ao contemplar as imagens pintadas nas cavernas pré-históricas, nota-se a concisão de suas linhas e dos poucos detalhes acrescentados. Imediatamente o espectador não tem dúvida de que está diante de um bisonte, um leão, um cervo ou qualquer outro animal. Muitas vezes trata-se de uma linha única desenhada sobre uma pequena flauta, formando a imagem de um cervo, exemplo de uma concisão máxima da forma. Como a que tivemos o privilégio de ver no museu de história natural de Nova York. Ao contrário do que se possa pesar, essa brevidade não é sinônimo do primitivo em sua acepção pejorativa: algo incompleto e imperfeito. Pelo contrário, indica que há dezenas de milhares de anos, possivelmente antes do próprio período de transição do médio para o alto paleolítico, e possivelmente antes até das migrações da África à atual Europa, nossos antepassados adquiriram capacidade cerebral e psíquica para olhar objetos naturais e deles abstrair a essência. A arte pré-histórica é ao, mesmo tempo, figurativa e extremamente abstrata.
Abstração e naturalismo parecem antagônicos. Trata-se do oposto. Quando poucas linhas definem para todos que aquela figura pintada se trata de um leão, mesmo nos dias de hoje, é confirmado que seu criador não diferia muito dos seres humanos atuais.
No século XX Pablo Picasso, em 1945 para ser mais preciso, por meio de uma série de onze figuras em uma litogravura, pegou uma de suas imagens míticas pessoais – um touro – e foi, em cada desenho, simplificando a forma à sua essência. O primeiro é um desenho detalhado do touro, quase uma fotografia. O último utiliza apenas sete linhas curvas e dois pequenos círculos. Mas formam um touro completo: chifres, corpo, cabeça, pernas, rabo, testículos e pênis.
O artista evocou a diversidade e a vitalidade do mundo natural que inspirou os pintores de Altamira e Lascaux [...] cavernas pré-históricas que havia visitado (Cox; Povey, 1995, p. 38). )
O desenho de Picasso revela o talento, a elegância da concisão e a beleza. Mas não era só arte pela arte. Quem conhece a biografia do artista espanhol sabe de sua obsessão sexual com touros e minotauros, assim como a história tumultuada de seus muitos relacionamentos femininos. Genial mas humano, demasiadamente humano, o artista sublimava, mas não tanto. Parece que a origem desse excesso pulsional em nossa espécie vem de longa data.
Nas pinturas das cavernas há muito mais. Picasso utilizou superfícies planas e sobre onze delas construiu a sucessão de formas. Nas cavernas pinturas foram feitas utilizando as reentrâncias e saliências das paredes e dos tetos. Muitas vezes as linhas de tinta só completam formas que foram imaginadas pelos artistas pré-históricos. O jogo de luz e sombra da rocha faz o resto.
Lewis-Williams (2009) demonstra como numa quase escuridão a forma do animal pode ser evocada pelo tato. Outras vezes estalactites, estalagmites ou apenas rochas isoladas, que já lembravam algum animal ou entidade, foram apenas um pouco esculpidas para ressaltar sua figura.
Esse dom de olhar um ser vivo e extrair a essência de sua forma, de olhar a parede ou outra formação de pedra de uma caverna e nela rever esse animal que só existia no mundo fora da caverna, de acentuar ou diminuir certas características de sua representação, e de transmitir essas percepções aos demais membros do grupo, demonstram a existência em época tão remota de características caras à psicanálise: projeção e identificação.
Teriam nascido há dezenas de milhares de anos. Ao mesmo tempo que os mecanismos do inconsciente – deslocamento e condensação, metáfora e metonímia – possibilitaram reutilizar as formas aprisionadas em sua essência e recombiná-las.
De onde teria surgido a recombinação das formas, até transformá-las em fantasia e mito, que permite apreender a forma física de um ser humano, fazer o mesmo com a de um leão e criar uma terceira que inexiste no mundo real: um homem-leão?
Sonho e criação
Os mamíferos superiores sonham. Experiências com cães mostram que seus sonhos sempre possuem os mesmos temas. Seccionando seus cérebros em áreas específicas, os cães dormiam todo o tempo, mas mexendo com o corpo nos momentos em que se supunha estivessem sonhando. A interpretação desses movimentos foi a de que seus sonhos se constituíam unicamente de dois temas: caça e cópula.
Tanto quanto saibamos, experimentos tão cruéis não foram tentados com nossos primos primatas mais próximos, chipanzés e bonobos (os cães eram sempre sacrificados). Mas devido ao córtex dos primatas ser bem maior que o dos carnívoros, há muito que também devem ter surgido períodos maiores de sono e sonho, que é nossa característica humana. Se nossos primos primatas sonham outros temas que o dos cães e gatos ainda não é possível saber. É possível que a plasticidade das imagens e temas dos nossos sonhos seja uma característica humana exclusiva.
Talvez depois da descoberta do recalque, que permitiu a pesquisa de métodos para deduzir os conteúdos inconscientes, a segunda maior conquista freudiana tenha sido a descoberta de como funciona o processo primário. A partir de A interpretação dos sonhos (Freud, [1900] 1979) sabemos que, por exigência do recalque (censura), o deslocamento e a condensação metamorfoseiam as imagens do passado e do dia anterior, combinando-as em novas formas. Imagens que raramente se repetem, ora dissociadas de qualquer sentimento, como um filme passando em uma tela, ora são dotadas de intensas e estranhas tonalidades afetivas.
Lewis-Williams (2009), apesar de seu cognitivismo, salienta a importância dos sonhos e hipotetiza que, ao contrário de outras espécies de homídeos, tal os neandertais, nossos antepassados devem ter começado a lembrar diurnamente parte de seus sonhos. E começaram a se perguntar onde estava aquele outro mundo tão diferente do cotidiano.
Subscrevemos a ideia desse autor e de outros, que o mesmo processo recombinatório de imagens também foi surgindo nas percepções da vida diurna, ou que a lembrança das imagens noturnas começou a se infiltrar e ser confundida com as percepções da consciência ainda que acordada.
O mundo onírico deve ter levado à suposição de que outra realidade deveria existir. Onde ainda existiriam aqueles já mortos, mas que reapareciam nos sonhos? E esse outro mundo não era estável, as coisas se transformavam umas nas outras. Decifrar a origem das imagens oníricas deve ter ocorrido simultaneamente ao processo de questionar a essência das imagens diurnas e a inconscientemente recombiná-las.
Provavelmente muito, muito antes de qualquer arte paleolítica, o primeiro ser humano que olhou um galho seco de árvore ou uma pedra e viu nesses objetos a imagem da presa de um felino, por exemplo, fundou a imaginação (imagem em ação). Através de Freud e Melanie Klein sabemos que a fantasia inconsciente fecunda a criatividade consciente e vice-versa.
Mas se falamos em consciente e inconsciente, também estamos falando de sua separação devida ao recalque, da sobra de pulsão dos objetos recalcados, que emerge e tem de ser satisfeita na vida diurna. O excesso da pulsão motivou ao mítico primeiro humano olhar para o galho da árvore ou uma pedra e imaginar o dente de um tigre. De acordo com o pessimismo trágico freudiano, esse ser humano tanto deve ter utilizado sua descoberta para se defender e aos seus, para obter mais alimento, mas também para matar seus vizinhos.
O sonho pode ir desde a aparente indiferença total em relação às figuras que passam na tela, caso em que toda pulsão foi transformada na intensidade das imagens visuais, até seu oposto de uma intensidade afetiva espantosa, que levou místicos já de eras recentes a afirmar que Deus aparecia em sonho.
Daí se vê que a crua abstração utilizada para intelectual e desapaixonadamente reduzir bois ou carneiros a sinais gráficos elementares, criar registros para contá-los por pontos e linhas, por exemplo, origem mais antiga da matemática, é o outro lado da moeda de toda crença irracional na existência de outro mundo. E a necessidade dessa crença deve ter se tornado imperiosa para os primeiros humanos, que se deram conta do que era o tempo; também era uma contagem, e a morte, o somatório.
Simbolismo: abstrações e animais
A partir da explosão criativa ocorrida na revolução do paleolítico superior, formas humanas e de animais passaram a ser simultaneamente representadas tanto com base em seus traços essenciais como de maneira naturalista. As cavernas pré-históricas europeias, além das figuras claramente discerníveis de animais, ao mesmo tempo têm suas paredes decoradas com desenhos completamente abstratos: pontos, linhas que se cruzam formando grades, linhas em ziguezague, sinuosas ou arqueadas.
Lewis-Williams (2009) as interpreta as figuras abstratas como fenômenos semelhantes às alucinações que temos quando começamos a acordar ou a dormir, assim como com as alucinações causadas por substâncias. Esse especialista em arte pré-histórica interpreta as linhas e os pontos, bem como as figuras de animais, como resultado de práticas xamânicas e estados alterados de consciência por meio de música e alucinógenos.
Qualquer interpretação que se dê aos desenhos é arriscada. Mas conduz a uma pergunta anterior. Se é incerta qualquer interpretação moderna, há a certeza de que existe uma interpretação. A frequência das linhas e dos pontos em várias cavernas diferentes, por períodos que devem ter ido de anos a séculos, mostram que havia um significado partilhado durante longo tempo por grande número de pessoas. Ao contrário das figuras de animais, as abstratas possivelmente representavam estados afetivos, talvez o registro de êxtases místicos ou, quem sabe, o prosaico registro de uma caçada excelente ou da vitória sobre uma tribo vizinha. Talvez tenha significado tudo isso junto e muitas outras coisas mais.
São para nós hoje incompreensíveis, porque eram significados compartilhados por sociedades que desapareceram. Mas se tivéssemos uma máquina do tempo, seríamos capazes de compreender suas explicações para a arte e o uso das cavernas. Falta-nos uma pedra da Roseta. Mas não há dúvida de que eram símbolos cujo significado se mantive durante centenas ou milhares de anos, partilhado por vários grupos de centenas de pessoas. Um número razoável de indivíduos, que necessitava de uma linguagem complexa para estruturar uma sociedade complexa.
Para os especialistas, a partir dos achados arqueológicos até o presente, os primos neandertais, cujos grupos não atingiam mais que algumas dezenas, jamais teriam alcançado esse grau de pensamento abstrato e simbólico, nem mesmo uma linguagem tal como hoje a conhecemos. Extintos há apenas 27.000 anos, provavelmente por seus primos sapiens, sua sociedade era simples, sem grande hierarquia e vivendo apenas um presente quase absoluto.
Já para nossos antepassados, numa cultura sem linguagem escrita, os pontos e as linhas funcionavam à semelhança de ideogramas. Só que ao contrário dos ideogramas de algumas culturas e de até alguns mais simples de idiomas ainda presentes, não há nenhuma relação entre as linhas e os pontos com a forma do objeto que era representado. Estados afetivos e místicos comunais e grupais não são passíveis de representação concreta.
Tudo que podemos inferir é que se tratava de gravar externamente, talvez para a memória das gerações seguintes, eventos importantes por meio de sinais completamente abstratos. Aqui temos uma das definições de símbolo: uma representação comum – social – condensando em sua forma material dados que possuem pouca ou nenhuma semelhança com formas do mundo objetivo.
A construção de símbolos só é possível pelo uso, consciente ou não, dos mecanismos que tornaram o sonho humano plástico: deslocamento e condensação. No caso dos pontos e das linhas das cavernas pré-históricas, ênfase em uma extrema condensação.
Lewis-Williams (2009) e Cook (2013) assinalam que mesmo as figuras de animais não estão dispostas ao acaso. Muitas formam conjuntos extraordinariamente belos. Teria sido possível que as imagens do sonho, eterna metamorfose individualmente sentida durante o sono, eram coletivamente reexperimentados em cerimônias de êxtase místico nas cavernas?
Na caverna de Chauvet (França), descoberta em 1994, num dos mais famosos dentre muitos outros conjuntos de imagens, conhecido como ‘painel dos cavalos’, há cerca de vinte animais de várias espécies, em diferentes tamanhos, compondo diversos planos (Clottes, 2013, p. 38-39).
Focando os principais desenhos, no primeiro deles dois rinocerontes se defrontam chifre a chifre (sim, havia rinocerontes europeus). Atrás quatro enormes cabeças de cavalo, cada qual com características e ângulos diferentes, cada uma acima e à frente da anterior, compõem um poderoso movimento único. Mais ao longe dos cavalos, outro rinoceronte é visto, correndo. Há outras formas, mas de modo resumido, no todo da composição, as cabeças de cavalo parecem vir do céu, como seres superiores dominando os rinocerontes em conflito e fuga. Não foram dispostos desse modo apenas por uma questão puramente estética de arte pela arte. Também possuíam algum simbolismo que vagamente podemos intuir.
As figuras das várias cavernas não representam quantitativa ou naturalisticamente a fauna da época. Há escolha por certos animais. Em Hohlenstein Stadel, por exemplo, há prevalência de leões, mamutes e figuras antropomórficas.
Palavra e morte
As pinturas e os objetos encontrados nas cavernas europeias conduziram, além da explosão artística e criativa, a interpretações sobre suas funções religiosas. Mas há algo além do que Lewis-Williams considera de modo reducionista, em seu modelo baseado no cognitivismo, o nascimento da religião. A crença não é mero erro cognitivo neurocientificamente explicável.
A lembrança diurna do mundo sonhos, a recombinação das imagens lembradas e das percepções diurnas que permitiram a criação de uma sofisticada estética, todas foram mudanças que também comprovam a existência de uma comunidade numerosa e complexa. Tais sociedades necessitavam de uma linguagem verbal sofisticada que permitisse seu funcionamento.
Toda linguagem humana, e não apenas a verbal, se forma de um número finito de elementos com possibilidade infinita de combinação. À semelhança da plasticidade artística nos conduz à hipótese de que também se desenvolveu muito a plasticidade verbal durante a revolução do alto paleolítico. Ora, toda a linguagem é uma disposição de seus elementos ao longo do tempo.
Além da aparição de mortos em sonhos e devaneios diurnos, seres que adquirem a percepção do tempo, adquirem a percepção da própria morte futura: desconhecida e inevitável. Dito em psicanalês, nascera o conhecimento da maior de todas as angústias, da qual Freud acabou por deduzir que todas as demais, inclusive a de castração, eram apenas simples derivadas. Herança do primeiro de todos os traumas – o nascimento –, uma vivência de destruição e aniquilamento da plenitude intrauterina, o absoluto ápice do desprazer segundo o princípio de prazer. O horror à morte futura porque sua experiência vem do passado.
Em Sungir, na Rússia, nas escavações iniciadas em 1957 e realizadas ao longo dos anos cinco sepulturas foram descobertas. Numa delas um homem fora sepultado com roupas adornadas com várias faixas enfeitadas com um total de 2.936 contas de marfim perfuradas, com 25 braceletes também de marfim, mais um colar com uma pedra pintada de vermelho e um capuz adornado de dentes de raposa ártica.
Em 1969 foi encontrada uma nova sepultura, datada de até 32.000 anos. O que foi mais surpreendente é que nessa foram encontrados dois esqueletos de crianças: o de um menino de cerca de doze anos, colocado em direção oposta, cabeça a cabeça, com o de uma menina de cerca de dez anos, ambos com os braços dobrados sobre a pélvis. O menino possuía em suas roupas faixas com 4.903 contas de marfim, em sua cintura um cinto com 250 caninos perfurados de raposa e um capuz com muitos desses dentes. Nos adornos da menina, entre outros enfeites, havia 5.274 contas perfuradas de marfim, mas nenhum dente de raposa.
Ao redor dos corpos dessa sepultura dupla uma variedade de objetos havia sido colocada: uma pequena estátua de mamute em marfim, outro objeto como uma secção do mesmo material na forma de um cavalo, uma série de mastros ou estacas de marfim, entre as quais uma ornada e com o comprimento de dois metros e meio. Esta última era grande e pesada demais para ter sido usada como lança, mesmo por um homem adulto.
As sepulturas até agora descobertas em Sungir revelam que seus usuários eram pessoas muito especiais, que pertenciam a uma sociedade complexa. Foi calculado que nas contas de cada criança foram despendidas mais de 2.000 horas de trabalho. Enquanto artesãos especializados trabalhavam, outros forneciam sua subsistência. Os vários objetos, em especial a lança de dois metros e meio, demonstram valor meramente simbólico e afetivo. A riquíssima sepultura das crianças demonstra que era uma sociedade organizada por valores além da força física, o sexo ou a aptidão para a caça. Tal sociedade exige em seu funcionamento uma linguagem verbal complexa. Nada a ver com a ideia popular dos homens da época das cavernas como seres grosseiros, vestidos de peles de animais e pouco mais produzindo que grunhidos.
Deduz Lewis-Williams que a comunidade de Sungir era formada por:
Pessoas usavam itens com significados, como os dentes de raposa, para construir suas identidades em vida e para construir uma identidade especial, talvez realçada, específica para os mortos. O alto status que possuíam esses jovens talvez tivesse sido herdado, mas também poderia ter sido adquirido assim como ocorre com a escolha do Dalai Lama. A quantidade de bens demonstra a existência de uma extensa rede social, não o produto de uma única família. Esse não era um mero bando de caça, isolado e igualitário (Lewis-Williams, 2009, p. 80, tradução do autor).)
Já Cook complementa que
[...] o enorme investimento feito nas sepulturas das crianças de Sungir indica que pode ter ocorrido uma preparação antecipada às mortes, e que, dado as características do sepultamento, parecendo ter sido simultâneo, pode assim significar um sacrifício, mais que a hipótese de acidente ou doença (Cook, 2013, p. 121, tradução do autor).
amente ao nascimento da arte, da linguagem verbal complexa, do pensamento abstrato, dos símbolos, de valores e de hierarquias sociais, também nascera a percepção do tempo, da finitude da existência e o medo da morte e a crença em uma outra vida como obsessões da humanidade. Ou melhor, para Freud, a grande neurose (ou psicose) da humanidade.
Apesar de os túmulos de Sungir serem de 10.000 anos após o homem leão de Hohlenstein Stadel, os primeiros vestígios de sepultamentos datam de 130.000 a 100.000 anos. O que Sungir mostra é a existência de uma sociedade economicamente complexa, plena de valores simbólicos e poderosos vínculos afetivos. É possível que aquela de Hohlenstein não adornasse seus mortos com tanta riqueza material e rituais tão trabalhosos. Mas já possuía todas as características da sociedade de Sungir.
No momento o que mais nos interessa são as provas de que tais sociedades só podiam ter surgido a partir da existência de uma linguagem verbal complexa. Mas teria sido a linguagem verbal a única ou a primeira forma de linguagem?
Música e palavra
Entre o grupo de cavernas próximas de Hohlenstein Stadel, há a Hohle Fels. Nela foram encontradas a primeira figura feminina conhecida até o momento – a Vênus de Hohle Fels – esculpida em marfim entre 35.000 e 40.000 anos atrás; mais a outra figura já mencionada híbrida de homem e leão, e duas flautas, todas datando de pelo menos 37.000 anos.
Por sua vez, em Geisenklösterle, caverna a dois quilômetros de Hohle Fels e explorada a partir de 1973, foi achada uma flauta de 42 ou 43.000 anos: até agora o instrumento musical mais antigo da humanidade. Somados vários sítios arqueológicos da revolução do paleolítico superior, até agora foram encontradas pelo menos duas dúzias de flautas. Também há indícios de que, nas cavernas, os locais de maior ressonância são mais propensos a ter imagens nas paredes do que os locais não ressonantes (Lewis-Williams, 2009, p. 224).
Concordando em parte com as ideias de Lewis-Williams e Mithen a respeito do xamanismo e a origem da música na pré-história, escreve Cook (2013) sobre os achados desse amplo conjunto de cavernas:
[...] do mesmo modo que as imagens humanas e de transformações, os instrumentos musicais parecem ter sido parte da atividade cotidiana, sugerindo que o relacionamento das pessoas entre si, com a natureza e o cosmos, era parte da mesma visão de mundo (Cook, 2013, p. 47, tradução do autor).
Stephen Mithen, outro arqueólogo, também especialista em arte, religião e pensamento na pré-história, dedicou um livro à questão da música: The singing neanderthals (2005). Mithen defende a tese de que, por vota de dois milhões de anos no passado, os antepassados africanos – Homo ergaster – começaram a desenvolver formas mais ricas de comunicação. Já possuíam alto grau de encefalização e uma laringe suficientemente complicada para vocalizar algo como um canto contínuo que Mithen nomeia ‘Hmmmmm’. Além dos gritos variados emitidos por macacos e primatas, a intensidade, a acentuação e o tom do ‘Hmmmmm’ tornaram-se um modo muito mais sofisticado de comunicação, enriquecendo as formas de caça, pilhagem, criação dos filhos, corte e acasalamento, unidade social do grupo. Os neandertais, descendentes da primeira imigração da África à Europa, teriam permanecido nesse estágio. E por isso acabaram indo para a lata de lixo da história evolutiva humana.
Já na própria África um segundo grupo evoluiu para o Homo sapiens e, como já vimos, dispersou-se por todo o mundo. Foi nele que ocorreu o que Mithen denomina ‘fluidez cognitiva’. Além da arte, essa fluidez permitiu que o ‘Hmmmmm’ aos poucos fosse segmentado em sons, repetidos e recombinado em fonemas. Iniciara-se a criação da linguagem verbal.
Aliás, há mais de um século Nietzsche em O nascimento da tragédia a partir da música, e no século XX a filósofa Suzanne Langer, autora de Philosophy in a new key, já tinham proposto a hipótese da linguagem musical como origem da verbal.
Mithen afirma:
A música surgiu dos restos do ‘Hmmmmm’ depois que a linguagem1 evoluiu. Composicional, a linguagem referencial tomou conta da troca de informação de modo tão completo, que o ‘Hmmmmm’ tornou-se um sistema de comunicação dedicado quase inteiramente à expressão de emoções e para forjar a identidade de grupos, tarefas para as quais a linguagem é relativamente ineficaz. De fato, tendo sido liberada da necessidade de transmitir e manipular informação, o ‘Hmmmmm’ pode se especializar naquelas funções e estava livre para evoluir no sistema de comunicação que agora chamamos de música (Mithen, 2005, p. 266, tradução do autor).
A descoberta de mais de vinte flautas, de impressionantes pinturas em cavernas, ambas de época e local próximos ao homem leão, desenha as várias faces da explosão criativa do paleolítico superior. Indica também que existiam populações alcançando a casa de centenas de pessoas, talvez um milhar: uma sociedade complexa e hierarquizada, necessitando de uma linguagem verbal também complexa.
Desconhecíamos essas ideias de Mithen, também subscritas por Lewis-Williams. Antes de ler esses autores, havíamos discorrido psicanaliticamente sobre a relação entre as linguagens verbal e musical (Lopes, 2006, 2013). Entre as várias conclusões que chegamos, a principal havia sido que a voz fora o elemento primordial, o que Lacan denominara de pulsão invocante, ‘a experiência mais próxima do inconsciente’.
Desde Nietzsche, em O nascimento da tragédia, é debatida a origem da poesia a partir da música. Logo, o que inicia, a invocação musical, é semelhante às hermas de Janus, escultura da cabeça de um deus, que possuía duas faces: significante com faces de prosa e poesia, ambas sobre uma coluna de música. Porque, desde que não seja um manual de funcionamento de uma geladeira ou um tratado de lógica, quanto mais literária, também maior é a musicalidade da prosa. Muito menos subsiste qualquer poesia sem o ritmo da sonoridade das palavras (melopeia), o ritmo de apresentação das imagens (fanopeia) ou o ritmo da sucessão das ideias (logopeia). Apesar da ancoragem musical da linguagem em palavras, a música não possui o ‘não’. E primeira tópica freudiana, o ‘não’, insere-se no recalque, junto com a linguagem verbal.
A música se ancora em uma afirmação (Bejahung) mais antiga: é anterior à negativa consciente do discurso verbal, à censura moral e ao ‘não’ inconsciente do recalque. Propomos a hipótese de que em nossos primos neandertais ainda não surgira o recalque, que como uma rocha que despenca da montanha, fraturou em duas partes a psique humana: uma parte consciente/pré-consciente, outra inconsciente. Talvez tenha sido o ponto principal da revolução do paleolítico superior e de sua explosão criativa.
Paleolítico superior e neurose da humanidade
As linguagens verbal e musical se separaram, e esse fato possibilitou que muito mais surgisse. Para satisfazer a pulsão o recalque teria causado um enorme aumento dos mecanismos do inconsciente freudiano da primeira tópica – deslocamento e condensação –, ou sua leitura lacaniana – metáfora e metonímia – de maneira que as formas, já aprisionadas em sua essência, passassem a ser infinitamente recombinadas.
Os neandertais possuíam um cérebro de tamanho equivalente ao nosso. Mas no sapiens, por alguma forma de reorganização neuronal, teria surgido uma capacidade mnêmica muito maior. Apesar de seu referencial teórico não psicanalítico, e interessante por isso mesmo, Mithen ancora a revolução do paleolítico superior nos conceitos de fluidez cognitiva e metáfora. Conclui o arqueólogo especialista na pré-história da mente:
Seja ou não uma memória aumentada a chave, os circuitos neurais extras que possuem os humanos modernos lhes fornecem o que denomino de ‘fluidez cognitiva’. Essa é, em sua essência, a capacidade para a metáfora, que subjaz à arte, à ciência e à religião – os tipos de comportamento que estão muito pouco presentes nos vestígios arqueológicos dos neandertais (Mithen, 2005, p. 233, tradução do autor).
Sob um viés psicanalítico também é plausível a hipótese de que a grande ampliação da memória exigisse também o surgimento ou aumento do recalque. Impossível seria a psique humana sem organizar e separar os processos inconscientes dos conscientes/pré-conscientes. Mas trata-se de uma membrana porosa. Também lembremos que na primeira tópica freudiana é no recalque que se encontra a linguagem. Se, por um lado, a membrana se separou, por outro, através da metáfora, essencial à linguagem verbal ou não verbal, conhecimentos até então estanques foram misturados e recombinados. Teria, por um lado, ocorrido uma revolução da criatividade humana, por outro, uma grande confusão.
Mithen e Lewis-Williams, que adota suas ideias, acrescentam ao conceito de fluidez cognitiva, a possibilidade de várias formas de inteligência (linguística, social, técnica, natural) terem passado a se comunicar e influenciar umas às outras. Para esses autores, o nascimento dessa fluidez teria sido outro passo a causar a revolução do paleolítico superior. Teria sido ocasionado por alguma mutação genética? Ou por uma crescente complexidade social exigindo maior integração das áreas corticais e vice-versa. O fato é que ocorreu não um aumento do crânio, e sim alguma reorganização interna.
Ambos os autores são prudentes afirmando que os ossos até agora encontrados não permitem maiores especulações. Se poucas horas após a morte o cérebro começa a se dissolver, quanto mais deixar vestígios orgânicos para dezenas de milhares de anos. Todas as suas deduções são a partir das pinturas e dos objetos encontrados dentro ou fora das cavernas, das sepulturas e da impressionante difusão da segunda migração do sapiens, simultânea à extinção dos outros homídeos, bem como a catastrófica destruição ainda na pré-história das faunas, principalmente na Austrália e nas Américas, cada vez que a segunda grande migração atingia uma nova região. O sucesso evolutivo depende do ângulo de quem o vê.
Parece-nos que todas essas formas de inteligência – linguística, social, técnica, natural – além de se interligarem, se enriqueceram a partir da fantasia. E que no momento em que o processo secundário, pelo recalque, se diferenciou por completo do processo primário, o inconsciente dinâmico dos primórdios da teorização freudiana ficou livre para crescer ilimitadamente.
Mas o recalque não é uma parede intransponível, exceto em casos muito patológicos; é uma membrana porosa, que permite a fecundação pela fantasia inconsciente de todas as inteligências descritas por Mithen. Surgiram não uma, mas várias grandes e pequenas neuroses e psicoses da humanidade. Entre todas elas, uma se destaca na crítica da obra de Freud.
O estudo das pinturas e dos objetos nas diversas cavernas é interpretado por Lewis-Williams como evidência de práticas xamânicas – a primeira religião da humanidade, cujo papel teria sido essencial como aglutinador social, permitindo grupos humanos cada vez maiores. Além das pinturas e flautas, nas cavernas também são encontrados com frequência marcas de centenas de mãos, de pedrinhas e objetos enfiados nas rochas, de chãos repletos de plaquetas com desenhos. Muitos dos locais de concentração das pinturas correspondem aos de melhor acústica.
A viagem ao longo das extensas e complexas cavernas seria uma viagem ao lugar onde este e o outro mundo entrariam em contato. As pinturas, as mãos e os objetos nas paredes, enfatizam a membrana entre os dois mundos. Conduzidos por experientes xamãs e com o uso de substâncias psicoativas, junto à música, ao canto e à dança, os humanos do paleolítico, em êxtase, entrariam em contato, por algum tempo, com o mundo que não existiria na superfície. O mundo dos espíritos e dos mortos, o outro mundo que aparece à noite, na metamorfose dos sonhos. O mundo cuja crença aplacaria um pouco a descoberta do tempo e a consciência da morte.
Com a descoberta da temporalidade e da finitude surgira uma angústia que tinha de ser de ser repetidamente aplacada. Angústia ainda mais aumentada pela crescente percepção do desvalimento diante das forças naturais (basta lembrar as várias glaciações1) e da fragilidade física diante de uma fauna então toda selvagem. Os processos da mente humana foram projetados para tentar compreender e controlar a natureza e os animais.
Como descreve Freud em Totem e tabu (Freud, [1913] 1978), à natureza foi dada vida, e aos animais, processos psíquicos parecidos com os nossos. Criou-se um mundo paralelo de mitos e seres sobrenaturais, que mais revela sobre nós mesmos do que sobre o mundo real. O tema foi resumido Freud em um segundo texto, ainda mais controverso, sobre o homem pré-histórico Neuroses de transferência - uma síntese:
A linguagem era para ele magia; seus pensamentos pareciam-lhe onipotentes; compreendia o mundo a partir de seu próprio eu. É a época da concepção anímica do mundo e de sua técnica mágica (Freud, [1915] 1987, p. 76-77).
Mas o uso dos processos psíquicos para criação de um segundo mundo também se mostrou muito útil para a sobrevivência. São os mitos que, desde o paleolítico superior até hoje, mantêm desde tribos de centenas, até impérios de dezenas, centenas de milhões de seres humanos, agregados: religião, nacionalidade, progresso, ideias como justiça e liberdade, ideais políticos, superioridade racial ou tecnológica, entre muitos outros. Quando os mitos começam a ser percebidos apenas como criações da nossa fantasia, grupamentos humanos do tamanho que sejam, começam a se desagregar.
O aumento populacional pelo homo sapiens ocorrido nos últimos cinquenta mil anos é fácil de constatar, assim como as evidências de sociedades cada vez mais complexas, hierarquizadas e maiores. Proibições ao exercício livre da sexualidade, que sem proibições e interdições sempre tende a desagregar uma sociedade, tiveram de ser cada vez mais impostas e justificadas pelos mitos. ‘Os desejos sexuais não unem os homens, mas os dividem’ (Freud, [1913], 1978, p. 144, tradução do autor).
A conexão entre totemismo e proibição do incesto, tirada por Freud de O ramo de ouro, de James Frazer, torna-se bastante crível. Um alto grau de exogamia sempre foi uma boa garantia contra conflitos familiares e bom para alianças com outras famílias, tribos e até nações, além da quantidade de informação e tecnologia que acaba sendo também trazida pela miscigenação de diferentes tribos e culturas. Já a tese freudiana da interdição do incesto a partir do assassinato do pai primevo e do banquete totêmico permanece mais polêmica.
Metamorfose e totemismo
Nossos primos primatas mais próximos – chimpanzés e bonobos – já possuem o dom de empatizar e se solidarizar com seus semelhantes. A aptidão de ‘se colocar na pele do outro’ ocorre até mesmo quando não são biologicamente parentes. Constituem aptidões sociais de todos criar filhotes de mães que morrem, ajudar os idosos e padecer de luto.
Mas o dom da empatia também serve para manipular os sentimentos alheios. Assim como nós, nossos primos são exímios manipuladores e políticos (Waal, 2007, Lopes, 2013). Espécie nascida entre a confluência evolutiva dos chipanzés e bonobos, os homídeos devem ter aumentado esses dons, que chegam a seu ápice no sapiens.
Além de capazes de nos ‘colocarmos na pele do outro’ com o qual temos contato por parentesco ou convivência, somos capazes de fazê-lo com aqueles que nunca vimos ou que já morreram, ou que nunca existiram. À parte qualquer misticismo, é o que ocorre entre pessoas que não se conhecem, ou através da arte, da literatura e da leitura da história.
Se no paleolítico superior não havia escrita, os vestígios das cavernas e seus objetos revelam que nossos antecessores já eram exímios em todas as demais artes: dramática, figurativa, abstrata e musical. Artes interligadas pelas práticas religiosas num modo único manifestação.
Quando Mithen descreve que as várias formas de inteligência também se interligaram por meio da metáfora, pode-se desenvolver a ideia de que o conhecimento da natureza e dos animais (inteligência natural) se misturou com o das práticas inter-humanas (inteligência social), e ambas foram invadidas pelas características dos processos psíquicos e afetivos humanos.
O animismo de que tanto escreve Freud em Totem e tabu projetou-se sobre toda a percepção do mundo. E a psique e o corpo do sapiens foram invadidos pelo conhecimento da natureza e dos animais. A beleza e o sublime do mundo foram descobertos; seu terror e sua destruição revelados. Evolutivamente o desenvolvimento da inteligência natural facilitou a caça e a colheita e, mais tarde, a domesticação de animais e o nascimento da agricultura.
Mas se o sapiens também viu em si mesmo características dos animais e da natureza, ele desejou possuir dons físicos e instintivos dos seres que o cercavam. Alguns animais, seja pela ameaça que representavam, seja pela força física ou pela velocidade, acabaram por se tornar símbolos poderosos e afetivamente muito investidos.
Leões, mamutes e cavalos são os animais mais frequentemente encontrados nas pinturas e estatuetas. Seus dons inexplicáveis e invejados os tornaram para o sapiens o veículo entre este e o outro mundo. Após os felinos e os elefantídeos, as imagens mais frequentes são as de criaturas antropomórficas. E “a transformação em um animal é parte integral do xamanismo” (Lewis-Williams, 2009. p. 202)
Os arqueólogos da pré-história sugerem que, na época da explosão criativa do paleolítico superior, ainda era frágil a separação entre o sonho e a vida diurna. E para Freud, medo e desejo são mesmo. Assim, não seria uma contradição que o uso de substâncias psicoativas e a privação sensorial das cavernas, somadas a seu oposto sensorial, a exacerbação pelo canto e a dança, as pinturas e os amuletos, tornasse concreta a experiência de transformação em animal. Ou a visão de que alguns – os xamãs – realmente se metamorfoseavam. Além de uma prática de erotismo e violência, seu propósito maior era comunicar-se, através das finas membranas das paredes entre as cavernas e o outro mundo, com o espírito dos que morreram e com seres mais possantes que os humanos.
A lembrança acordada dos sonhos e o nascimento da metáfora fizeram com que as percepções diurnas deixassem de ser a de simples objetos naturais. Pela projeção todo o percebido pelos sentidos tornou-se dotado de qualidades subjetivas, sobretudo de pulsão.
Podemos denominar a esse percebido de imagem e defini-la
[...] no sentido de que a imagem tem a propriedade de ser um sinal cativante que se isola da realidade, que atrai e captura uma certa libido no sujeito [...] (Lacan, 1999, p. 233).
A isso acrescentamos também a captura de uma certa agressividade e de sadismo, de pulsão de morte.
Da época do paleolítico superior há dezenas de figuras de animais completos, algumas de grande beleza. Possivelmente representavam totens no seu primeiro estágio. Mas o homem ou pessoa leão de Hohlenstein Stadel não é mais um simples animal. É um teriantropo, designação científica composta do grego de therion (animal selvagem) e antropos (ser humano). E seja qual sexo for, está de pé, com os braços verticais quase colados ao corpo, do qual se destaca o espesso pescoço, sobre o qual sobressai, em relação ao tamanho do corpo, uma cabeça volumosa de animal. Sem dúvida, um objeto bastante fálico. Não há como deixarmos de supor que sua função seja deter o fluxo de imagens, estabelecer uma direção principal da linguagem, evitar a confusão entre o sonho e a realidade, em suma: o recalque.
Diria Lacan dissertando sobre Totem e tabu no Seminário 5 - as formações do inconsciente (1999):
[...] o totem também é isso mesmo, o significante de serventia múltipla, o significante chave, aquele graças ao qual tudo se ordena, principalmente o sujeito, porque o sujeito encontra neste significante aquilo que ele é, e em nome deste totem que se ordena, para ele, o que é proibido (Lacan, 1999, p. 321).
O que implica simultaneamente no justo contrário. Há o dito freudiano que o ser humano não aguenta muita realidade. Em condições socialmente controladas, dirigidas por sacerdotes (xamãs) no interior do percurso místico e mítico das cavernas, sejam só os xamãs ou os seguidores, a metamorfose e outros fenômenos eram alucinados e vividos no corpo como reais.
Segundo os termos psicanalíticos contemporâneos, a psicose latente era controladamente liberada. Ou, segundo o mito freudiano do pai primevo e seu assassinato pela horda de irmãos, e em uma interpretação calcada no lacanismo, o gozo absoluto, que um dia fora posse somente posse do pai primevo, era revivido no que mais tarde seria denominado de êxtase dionisíaco. Mas por breves momentos, isto é, era convertido em gozo fálico. Tipo de festa universal em todas as culturas passadas e presentes, definição do carnaval, que em sua origem também significava o retorno dos mortos.
O surgimento da metáfora e do pensamento mágico, ainda presentes em crianças, psicóticos e nas religiões, surgira de modo pouco ou nada controlado. Constituem operações simbólicas nas quais o uso semântico das palavras e sua relação objetiva com a realidade externa ou interna não era estável. O totem surgira para domá-las. Hoje a metáfora e o pensamento mágico fundamentam toda arte, desde que apropriadamente domesticados. Podemos pensar de modo homólogo que a oposição entre psicose e neurose, para alguns a oposição estrutural mais forte da psicopatologia, inclusive a psicanalítica, é uma oposição semelhante àquela que há entre animismo e totemismo.
Quanto ao tema principal de Totem e tabu, a filogênese do complexo edípico, muito foi escrito sobre o assassinato do pai primevo pela horda de filhos e o banquete totêmico que se seguiu, segundo Freud, a origem da lei social e do imperativo categórico, mais tarde expandido pelo conceito de supereu.
Mais ainda foi dito e escrito sobre o falo como símbolo da libido para ambos sexos, segundo Lacan. Nesse caso, o mito do nascimento do totem em Totem e tabu “esconde a estreita ligação entre a morte e o aparecimento do significante”, além de conjugar ambos com o desejo (Lacan, 1999, p. 321-322).
Para Freud a conexão entre proibição do incesto e totemismo é causa filogênica do que ontogenicamente se repete na infância de todas as crianças e em todas as neuroses infantis ou adultas. Totem e tabu teoriza a origem do complexo de Édipo, a passagem do homem da natureza à cultura. Bem abrupta, diga-se, conforme os ditames de um pensador ainda ancorado em conhecimentos do século XIX. Nesse livro Freud retoma o caso do pequeno Hans, uma fobia num menino de cinco anos.
O menino tinha fobia de cavalos e como consequência recusava-se a sair na rua. Demonstrava um medo de que o cavalo viesse ao seu quarto e o mordesse; e se descobriu que isto era a punição pelo desejo que o cavalo pudesse cair (isto é, morrer). [...] Mas não havia dúvida de que o pequeno Hans não era apenas assustado por cavalos; ele também se aproximava deles com interesse e admiração. Assim que sua ansiedade começou a diminuir, ele passou a se identificar com a criatura temida: passou a pular feito um cavalo e acabou mordendo seu pai (Freud, [1913] 1978, p. 128-129, grifo do autor citado).
A partir da defesa contra desejos mortais, mas também eróticos, bem como a partir de outras descrições clínicas semelhantes em crianças, Freud chama a atenção para a revivência do totemismo na infância. Muito poderia ser dito sobre o tema e o Édipo. Apenas acrescentaremos que, além de ser o cavalo o totem pessoal de Hans, ele próprio se transformava em cavalo.
Tivemos contato não clínico, mas familiar, com um menino próximo à idade de Hans que durante longo período, de tempos em tempos virava um cão. Até que nos deu uma boa mordida. O quadro foi curado (recalcado) por meio de uma politicamente incorreta boa palmada.
A conexão entre totemismo e metamorfose também é feita por outro autor, de um terceiro referencial, interessante por detestar a psicanálise, mas que se fundamenta em vastos conhecimentos de literatura, filosofia e ciências sociais. Também serve para complementar algumas conclusões sobre o totem e a função dos teriantropos.
Escreve Elias Canetti em seu volumoso tratado Massa e poder:
É a limitação a essa metamorfose específica – afinal, inúmeras outras seriam possíveis – que define a natureza do totem. [...] Nunca é demais enfatizar o significado desta dupla natureza do totem A própria metamorfose – mas uma metamorfose bastante específica – é fixada na figura do totem e transmitida a seus descendentes (Canetti, 1995, p. 353-354, grifos do autor citado).
Esse autor, em vários textos, discorre ser este o ofício do poeta: ser o guardião das metamorfoses. Tanto ao se apropriar da herança literária da humanidade, que é rica em metamorfoses, quanto num mundo onde só importam a especialização e produtividade, sentir o que um homem é e apreender a verdadeira consistência daquilo que nele vive, manter em aberto o múltiplo, o autêntico, a diversidade (Canetti, 2011).
O poder de se ‘colocar na pele do outro’, enquanto essência da literatura, só se torna ele mesmo uma metáfora poética porque é possível o antiquíssimo dom do sapiens da metáfora generalizada surgida durante a revolução do paleolítico superior. A criação da linguagem escrita aguçou esse dom.
Em outro texto dissertamos sobre a função da leitura:
Os seres humanos são por natureza criaturas que possuem prazer na mimese, isto é, tanto na representação ou imitação do real pela arte, quanto na imitação do gesto, voz e palavra de outrem. As imagens interiores provocadas pela leitura literária, que também podem ser evocadas pela contação oral, metamorfoseiam o leitor em diferentes personagens, transportam-no para épocas de culturas e crenças que já não mais existem, ou onde nunca poderá ir. A leitura literária torna possível viajar no tempo e no espaço, e não como mero espectador de um documentário, mas participante em uma experiência de ‘estar na pele de alguém’. Destas viagens não se retorna impunemente. Definiu o Nobel de Literatura Elias Canetti: o poeta-escritor é o guardião das metamorfoses. Cabe a cada leitor reativar esta herança, inventar seu roteiro de viagem e arriscar as transformações (Lopes, 2007, p. 20-21).
Mas não somente lemos. Assistimos também ao teatro e ao cinema, quando vivemos outras vidas além do tempo e do espaço. Até sentimos e empatizamos com objetos, mesmo que não possuam nenhuma característica antropomórfica ou figurativa, tal como na arte abstrata ou na música.
Aristóteles dissertava sobre mimese e catarse. A partir de sua Poética, além de reciclar o termo “catarse”, Freud conceituou os termos projeção e identificação, explicações psicanalíticas para mimese. Mecanismos que Melanie Klein uniu como formadores de um único movimento cíclico, ao qual nomeou projeção identificativa. Coube a Freud e seus seguidores aperfeiçoar a capacidade metamórfica, na clínica e na teoria, com o exercício de empatia do sentir e a percepção das associações do inconsciente alheio: a transferência.
Conclusão: de novo, Freud e seu problema com o feminino
Embora Mithen e Lewis-Williams embasem suas ideias com vastas evidências arqueológicas e produzam muitas hipóteses ousadas, por usarem um referencial teórico bem mais limitado do cognitivismo, reduzem temas muito mais complexos a expressões simples como ‘o nascimento da metáfora’. O que não os impediu de sofrer as mesmas críticas feitas a Freud. Extrapolam ao passado muitos conceitos atuais. Lewis-Williams também é acusado por críticos limitados por um objetivismo simplório de se utilizar de algo tido como duvidoso, como o totemismo e o xamanismo para postular uma protorreligião da humanidade.
O interesse trazido pelas novas descobertas sobre o paleolítico superior, tornado orgânico pelas hipóteses e Mithen e Lewis-Williams, direciona a releitura e a revalorização de Totem e tabu. Animismo, totemismo e xamanismo passaram a ser novamente a sério, tanto nos primórdios da antropogênese, quanto em suas disfarçadas manifestações nos dias atuais.
A relação entre totemismo e exogamia, subscrita e ampliada por Freud, contudo originária de Frazer e Durkheim, torna-se cada vez mais plausível. Mas ainda ficam em suspenso as hipóteses realmente originais de Freud: o assassinato do pai primevo, o festim e o banquete totêmicos, além da incorporação do remorso e da culpa pelo canibalismo.
Contra Freud surge algo além de suas especulações. E igualmente além de sua capacidade para postular um feminino, que não fosse uma paródia da histérica rica e seu simulacro castrado da cultura vitoriana. A mulher como uma cópia imperfeita do homem, refletida em Totem e tabu, onde não possuem nenhum poder de decisão e escolha, sendo meros objetos de desejo e troca de seus machos.
A possibilidade de que a ‘pessoa leão’ Hohlenstein Stadel possa ser um totem feminino fatalmente necessitará de uma atualização dos temas freudianos sobre a origem da lei, do imperativo kantiano e do superego. Algo cuja possibilidade Freud já intuía, nas frases soltas e mal conectadas no texto, ao mencionar Bachofen e sua teoria de um período matriarcal anterior. Os mitos de Totem e tabu terão de ser rebobinados numa versão menos patriarcal.
Abstract
The lion man, a totemic sculpture, dating about 40.000 years ago, up to now humanity’s oldest artistic artefact. The Upper Paleolithic Revolution, according to archaeology specialists, age when were born: spoken language, music, art, religion and a larger and more complex society. According to these specialists, uninfluenced by psychoanalysis, the appearance of metaphor was this revolution’s bearer. Using psychoanalytic concepts one can see the beginning of dynamic unconscious, repression and anxiety. Cave art as way of appeasing death’s awareness through religion. Conducting thus to the more recente studies about totemism and shamanism. Cave art specialists interpret half animal metamorphic beings as mediators between this and the otherworld. Through a pscyhoanalytic reading, also working to convert animism and it’s enclosing psychosis, into more stable totemism and neuroses.
Keywords: Totemismo, Animism, Birth of metaphor, Prehistoric art, Verbal language, Music.
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Recebido em: 13/03/2015
Aprovado em: 06/04/2016
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Sobre o autor
Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela UFRJ. Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ. Doutor em filosofia pela UFRJ. Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ. Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico do CBP-RJ. Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Transexualidades e Psicanálise do CBP-RJ. Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, do CBP. Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2016. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), 2004-2006. Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e adjunto da Faculdade de Educação da UCP. Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.
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