ANCHYSES JOBIM LOPES   

L’AMARA VITA - LACAN, FELLINI E A COISA
As menções de Jacques Lacan em seu Seminário sobre La Dolce Vita do cineasta e poeta Federico Fellini




Trabalho apresentado e publicado nos anais da XXVII Jornada do Fórum do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – Angústia e Laço Social

Belo Horizonte 2 a 3 de outubro de 2009



You are the most primitive. You’re as primitive as a Gothic steeple.(1)
(La Dolce Vita, a poeta Iris falando de Steiner
)



INTRODUÇÃO – A SINCRONICIDADE DAS COISAS
No dia 5 de fevereiro de 1960, na Itália, foi exibido pela primeira vez ao público o filme La Dolce Vita, dirigido por Federico Fellini, que também escreveu a maior parte do roteiro. Escrita que teve a colaboração de muitos outros, inclusive Pier Paolo Pasolini (que não aparece nos créditos finais). Os biógrafos de Fellini relatam que a passagem do diretor, até então expoente do neo-realismo, aos filmes cada vez mais simbólicos, com roteiros quase que por livre associação e que eram grandemente modificados a medida que andavam as filmagens, foi motivada pelo encontro do diretor italiano com a obra de Jung. O mentor do encontro foi o terapeuta Ernst Bernhard que, apesar de jungiano, freqüentava livremente círculos freudianos e era amigo de Edoardo Weiss, introdutor oficial da obra de Freud na Itália. Bernhard teria submetido Fellini a uma pouco ortodoxa relação analítica em que, às vezes, a sessão transcorria numa pizzaria debaixo da casa do terapeuta (2). Combinaram muito bem duas personalidades muito pouco ortodoxas.

No dia 25 de maio de 1960, na França, Jacques Lacan faz em seu Seminário uma referência a La Dolce Vita. Natural, uma vez que o filme explodira na Europa e América como um grande sucesso de público e crítica. Um pouco menos natural quando Lacan, nesta data, refere-se à coisa marinha que aparece na cena final do filme sendo sua famosa Coisa (3). Palavra usada em acepção diversa nos Escritos, mas em realidade criada de passagem no início de 1959 em O Desejo e sua Interpretação, a Coisa explodirá como um dos grandes temas da obra lacaniana a partir do seminário de 9 de dezembro de 1959 em A Ética da Psicanálise. Mês no qual simultaneamente Fellini dava os últimos retoques em seu filme, para que a data oficial de lançamento constasse 1º de janeiro de 1960. Apenas um caso de sincronicidade.

FELLINI, LACAN E A COISA
Mas Lacan não se deteve na referência da coisa felliniana com sua Coisa somente em A Ética da Psicanálise. Em outro momento de seu Seminário – A Angústia -, Lacan menciona novamente cena final de La Dolce Vita de Federico Fellini(4). Segue-se aqui um pinçamento de ambos os seminários:

(...) O momento em que de madrugada os boas-vidas (5), no meio de tonéis de pinho, à beira da praia, após terem permanecido imóveis e como que desaparecendo na vibração da luz, põem-se de repente a andar em direção a não sei que objetivo, que é aquele que deu tanto prazer a muitos que lá reencontraram minha famosa Coisa, isto é, não sei o que de nojento saindo de uma rede. (...) Só que os boas-vidas se põem a andar, e continuarão quase da mesma forma invisíveis, e são totalmente semelhantes a estátuas movendo-se no meio das árvores de Ucello. (6)

O que nos olha? O branco do olho do cego, por exemplo. Ou, para tomar outra imagem (...), pensem no boêmio de A Dolce Vita, no último momento fantasístico do filme, quando ele avança como que pulando, de uma sombra a outra no bosque de pinheiros, (...) até desembocar na praia e vê o olho inerte da coisa marinha que os pescadores estão fazendo emergir. Ali está aquilo por que mais somos olhados, e mostra como a angústia emerge na visão, no lugar do desejo comandado por a (7).

Não foi impunemente a Coisa apareceu em La Dolce Vita. Na cena final, Marcello, repórter representado por seu homônimo Mastroianni, ator favorito e alter-ego de Fellini em vários filmes, após uma noitada de degradante orgia com tintas sado-masoquistas, físicas e verbais, razoavelmente embriagado, sai rumo à praia, junto com todos demais boas-vidas. Passam etereamente pela rede de altíssimos pinheiros, em direção ao mar. Pescadores trazem do mar, por uma rede de pesca, uma grande coisa (na verdade totalmente construída no estúdio aos olhos e exigências de Fellini): amorfa, algo entre uma grande arraia, um peixe-espada sem a espada, meio gelatinosa e meio polvo. Mesmo indagados, é algo absolutamente inominável pelos pescadores. Prende a atenção do olhar de todos os atores e do espectador. A coisa marinha traz em sua frente arredondada, sem boca ou nariz, dois grandes olhos sem pálpebras. Está viva ou morta? Um dos boas-vidas afirma que está viva. Um dos pescadores responde que está morta há três dias. No entanto, Marcello passa o tempo todo olhando a coisa com certo ar de deboche.

O que Lacan não menciona é a continuação da cena. Quando, do lado esquerdo da praia, na qual deságua um largo riacho, uma moça chama por Marcello. Paola (Valeria Ciangottini), quase ainda uma adolescente, que em cena muito anterior Marcello conheceu em um restaurante a beira-mar. Garçonette tímida e segura, romântica e experiente, com a qual travou um breve diálogo sobre a saudade, que o encheu de ternura. E ao espectador. Marcello comparara seu perfil com os querubins das igrejas da terra natal de Paola: Perugia. Paola é muito diferente de todas as outras mulheres que passam pela vida de Macello: a semi-noiva possessiva e histérica (Emma/Yvonne Fourneaux), o desejo impossível pela atriz internacional ultra boazuda e ultra infantil (Sylvia/Anita Ekberg), ou o caso de vai-e-volta com a ricaça sofisticada e frustrada e fixada no pai (Maddalena/Anouk Aimée). Quando Paola acena a Marcello na praia, é inevitável ao espectador a esperança de uma mulher bem mais jovem, pura, otimista e descomplicada. Seria a redenção de Marcello. Mas Fellini não banca os happy-ends fáceis. Cheia de ternura e poesia, o final da cena final é a síntese do trágico. Paola acena e o chama Marcello vária vezes. Separados pelo riacho que, no entanto, é bem raso, Marcello parece envolto por uma espécie de bruma. Não a reconhece. O barulho do riacho e do mar, e sua bebedeira, não o deixam entender as palavras de Paola. Mas ela gesticula suavemente todo o tempo. Aponta para si mesma e para Marcello e, em seguida, com os dedos faz uma mímica: vamos caminhar/ir embora junto? Nada adianta. Mas por dois breves momentos a expressão de Marcello torna-se séria, introspectiva, como se angustiosamente olhasse algo dentro de si. Marcello afasta-se. Paola ora parece um pouco triste, um pouco desapontada, mas termina – cena final do final do filme – também com um olhar sério, como vendo algo muito maior que um simples desencontro de um flerte.

Na primeira fase do sono, antes de qualquer sonho, a ausência do desejo faz com que desapareça o mundo. Como desaparece o desejo de ver, também desaparece o de ser visto. Ao início da manhã, quando geralmente se sai do sono e sonho para a realidade, volta-se a desejar o mundo. Os boas-vidas são retratados por Fellini como seres existencialmente tênues, mesmo já tendo clareado o dia, à beira da praia, após terem permanecido imóveis e como que desaparecendo na vibração da luz.(8) Dentre estes seres escassamente desejantes, que não conseguem acordar completamente, também não há em Marcello desejo suficiente para ver ou ouvir Paola. O que remete ao início do percurso de Lacan a respeito da Coisa, a partir dos textos de Freud do Projeto e da Negação, articulando o problema da diferença entre imagem mnêmica e da imagem perceptiva, com a questão do juízo de realidade e do julgamento ético:

A experiência mostrou que não é somente importante saber se uma coisa (Ding) [objeto de satisfação] possui o atributo bom, e, portanto merece a aceitação no eu, mas ainda saber se ela está ali, no mundo exterior, de modo que se possa dispor dela se houver necessidade. (9)

O percurso da reflexão lacaniana sobre a Coisa completa-se com a metonímia que permite do acesso ao desejo, pois proibido pela castração, o desejo não visa novo objeto, mas reside na mudança de objeto em si. O desejável absoluto - a Coisa-em-si (parafraseando Kant) - o incesto, jamais satisfeito, terá de ser reconhecido como sede de uma falta eterna, na qual se instala o objeto a, causa do desejo.

O objeto a, que se aloja no vazio da Coisa, é aquilo que falta, que não é apreensível na imagem, (...) tal o olho branco do cego como a imagem reveladora e irremediavelmente oculta, ao mesmo tempo, do desejo escoptofílico(10). A inerte coisa marinha, com sua enorme íris morta circundada de branco, só havia causado escárnio a Marcello. Sem dificuldade aparente a viu, e se lixou de estar ou não sendo visto por ela. Se a coisa estava viva não tinha como não vê-lo, uma vez que não possuía pálpebras. Mas não conseguir reconhecer o olhar ou a voz de Paola deixou que a angústia lhe aparecesse. O terno olhar da suave Paola é o que lhe revela o efeito do olhar da monstruosa coisa: ali está aquilo por que mais somos olhados, e mostra como a angústia emerge na visão, no lugar do desejo comandado por a. (11)

A DOCE VIDA - MAS COM UMA PITADA DE ANGÚSTIA E DE TRÁGICO
Lacan ateve-se a localizar a Coisa na cena final de La Dolce Vita. Também podemos localizá-la em outras cenas. E, se na cena final, a angústia aparece estampada por breve momento na face de Marcello, na cena intermédias aparece em grau bem maior. O contraponto de Paola é o personagem Steiner que, em três momentos, aparece ao logo do filme. Cerca de dez anos mais velho e um pouco mais alto que Marcello, magro e com uma expressiva face retangular crispada de sulcos, Fellini agonizou meses escolhendo o ator (Alain Cuny) que caracterizasse perfeitamente o que tinha em mente: (...) representa com finura, mas por trás da armadura de uma máscara ligeiramente desumana. (12)

Marcello encontra a primeira vez Steiner em uma igreja: bela, enorme e moderníssima. Possuidor de um sobrenome alemão – de origem possivelmente judaica - já destaca Steiner como figura impar. Trata-se de um intelectual católico, pelo acesso que lhe é automaticamente franqueado ao órgão da igreja. A cena termina com Steiner tocando a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach. Mas com o leve toque de algo sutilmente fora da sintonia, de irrupção discreta do Real. Steiner toca bem demais, solene demais, deixa desconfortável seu amigo Marcello, que se afasta.

Na segunda cena Marcello e Emma, sua namorada/noiva, vão a uma recepção na casa dos Steiner, onde ficam maravilhados como são bem recebidos pelo anfitrião e sua mulher. Compõe a reunião uma coletânea de: escritores, poetas, uma pintora famosa; alterna-se entre o italiano e o inglês, revelando serem quase todos fluentes em ambos; recita-se poesia; musica oriental é tocada. Os Steiner são o sonho de consumo de Marcello e Emma: um intelectual e escritor reconhecido; um apartamento moderno, enorme e belíssimo; quadros de pintores famosos; uma esposa perfeita e um casal de lindos filhinhos. Entretanto, sem cair no satírico, que mais tarde caracterizaria tanto Fellini, há na casa de Steiner algo de bonito demais, de arrumado demais. É uma serenidade em suma excessiva. Deverá impressionar (...)(13).

Durante toda a cena da recepção vêem-se, através das enormes janelas, as colunas luzes moventes de holofotes, como as de filmes de guerra. Em determinado momento um dos convidados mostra em um gravador que a conversa vinha sendo registrada. Ao final da curta gravação, no qual a poetisa Iris o compara Steiner com a torre de uma catedral gótica e ele retruca dizendo não ser maior que um dedal, subitamente houve-se o ruído de trovões. O episódio causa desconforto e é sem dúvida umheimlich. O próprio Steiner deixa de lado o leve sorriso que mantém inalterado o tempo todo e de súbito levanta-se da cadeira. Imediatamente desliga o gravador. A mulher de Steiner explica que o marido gosta de gravar sons da natureza. A pedidos, Steiner religa a fita, mas agora há som de chuva e de passarinhos. Teria sido o trovão a aparição da Coisa, de um puro Real, em sua forma sonora?

Na terceira cena, alguns dias mais tarde, Marcello é subitamente acordado por um telefonema tarde da manhã. Vai correndo ao apartamento da recepção anterior, onde se depara com algo monstruoso: enquanto sua mulher saíra para fazer compras, Steiner assassinara a tiros seus dois filhos nos berços, e depois se suicidou com um tiro na cabeça. O corpo ensangüentado, contorcido de lado, sentado em uma cadeira, tem uma ferida na têmpora que parece um olho vermelho, encarando de frente quem entra no apartamento. O Real da Coisa irrompe como signo do trágico. A parte todas as explicações sobre o comportamento de Steiner – angústia recalcada, falso self, um depressivo ou psicopata muito disfarçado – a que parece mais plausível é o múltiplo assassinato/suicídio como uma forma última e final de incesto. A Coisa em seu Real em três de seus momentos sonoros: a Tocata e Fuga de Bach, os súbitos trovões e o susto do telefonema ao início da terceira cena.

CONCLUSÃO: UM SIMPLES HOMEM MUITO COMPLICADO
O filme todo Marcello busca por uma meta, mas nenhuma identificação é possível. Seu próprio pai aparece no filme: um senhor gordo, bonachão e simpático. Entre ambos a relação é afetuosa. Mas há sempre um descompasso. Pai e filho pertencem e vivem em mundos diferentes. Terminam por se afastar, como dois estranhos.

Marcello perpassa por vários estratos sociais, intelectuais e espirituais: do grand-set até prostitutas pobres, da igreja católica até milagreiros farsantes, de nobres solenes até debochados. Mas irrupção final da Coisa em sua versão marinha, seguida de sua impossibilidade de ver ou ouvir Paola, registra que Marcello, apesar de ser um personagem meio linear e simples, até ingênuo, seria a mera máscara do complicado neurótico edípico contemporâneo. Pela idade e inexperiência sexual (que foi discretamente indagada por Marcello), Paola é tabu do mais puro incesto. Um objeto de amor e sexo tem de lhe ser: muito idealizado (Sylvia), denegrido (Emma) ou impossível (Maddalena). Um objeto de amor sublimado (Steiner) que se transformasse em identificação, tem de lhe ser fatal. Filhos, nem pensar. Façamos um retorno a Freud e os ensaios da Contribuição a psicologia do amor.

BIBLIOGRAFIA: ALPERT, H. Fellini – a life. New York, Atheneum, 1986.
CHEMAMA, R. e VANDERMERSCH, B. Dicionário de Psicanálise. São Leopoldo, Editora Unisinos, 2007.
FELLINI, F. A doce vida. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.
FREUD, S. Contributions to the psychology of love, I, II, III. Em S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud, XI .London, The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1978.
KEZICH, T. Fellini – uma biografia. Porto Alegre, L&PM, 1992.
LACAN, J. O seminário – livro 7 – a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997
LACAN, J. O seminário – livro 10 – a angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.

Notas
1- Você é o mais primitivo. Você é primitivo como uma agulha gótica. (em inglês no roteiro original do filme); FELLINI, F. , 1970; p. 351.
2- KEZICH, T., 1992; pp. 264-267
3- LACAN, J., 1997; pp. 306-307.
4- Há uma terceira referência a Fellini no Seminário de Lacan, em O avesso da psicanálise, 11 de fevereiro de 1970, mas ao filme Satyricon.
5- Tradução na edição brasileira do Seminário do termo francês les viveurs. Empregaremos o termo adiante, embora cause certa confusão com o título do filme de Fellini de 1953 I Vitelloni, traduzido para o português como Os Boas-Vidas. Provavelmente não houve da parte de Lacan engano ou jogo de palavras entre os títulos dos dois filmes, uma vez que na França I Vitelloni passou com o título Les Inutiles.
6- LACAN, J., 1997; pp. 306-307.
7- LACAN, J., 2005; pp.277-278.
8- LACAN, J., 1997; pp. 306-307.
9- CHEMAMA, R. e VANDERMERSCH, B.., 2007; p. 63.
10-LACAN, J., 2005; p. 278
11- . LACAN, J. O seminário – livro 10 – a angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005; p. 278.
12- FELLINI, F., 1979; p. 92.
13- FELLINI, F., 1970; p. 14.