ANCHYSES JOBIM LOPES *  


Sociedades Psicanalíticas: Modo de Usar e Efeitos Colaterais

Reflexões sobre problemas como os trazidos pela análise didática e a supervisão clínica, e as relaçôes de poder na instiuição;

Publicado no Estudos de Psicanálise, Publicação Anual do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Número 27, Belo Horizonte, MG, Agosto 2004; e em Cógito, Publicação do Círculo Psicanalítico da Bahia, Número 06, Salvador, BA, 2004.



Sociedades psicanalíticas: modo de usar e efeitos colaterais

 

 

Anchyses Jobim Lopes

Círculo Brasileiro de Psicanálise

 

 


RESUMO

Por que ainda devem existir as sociedades psicanalíticas? Comparamos a transmissão da Psicanálise pelas sociedades, em oposição a universidade, abordando: teoria, supervisão e análise pessoal. A transmissão artesanal do ensino teórico nas sociedades em oposição à massificação e diluição da universidade. A supervisão clínica na Formação em oposição à insuficiência de supervisão nos cursos de graduação e pós-graduação. A obrigatoriedade da análise pessoal, que só pode ser exigida pelas sociedades.

Palavras-chave: Instituição psicanalítica, Transferência institucional, Análise pessoal.


ABSTRACT

Why must Psychoanalytical societies still exist? The tuition of psychoanalysis through the psychoanalytical societies and the university is compared approaching: theoretical knowledge, clinical supervision and personal analysis. The craft-like teaching at the societies in opposition to mass-like academic teaching. The clinical supervision at societies opposing it's insufficiency at the university. The compulsory necessity of personal analysis in opposition to it's absence at the academic process.

Keywords: Psychoanalytical institutions, Institutional transference, Personal analysis.


 

A Psicanálise é um significante muito valioso para deixá-lo ao desabrigo.
Romildo do Rego Barros

 

 

Introdução: InstituiçõesPsicanalíticas?  Melhor não tê-las! Mas se não as temos, como sabê-lo?

Em um momento de crise, seja da Psicanálise, contestada pela ideologia do organicismo do consumo e das respostas prontas de todos os fundamentalismos, seja da eterna crise econômica brasileira, quando freqüentar e manter uma instituição pesa muito no bolso de cada um, como defender a existência das sociedades psicanalíticas. Sociedades caprichosas desde a época de Freud, marcadas por: tentativas de hegemonia, cisões, personalismos e dogmatismos. Instituições que recentemente foram atacadas por entidades completamente alheias à história e aos princípios fundadores da Psicanálise e que, valendo-se da liberdade da falta de regulamentação, utilizaram o bacharelismo tradicional da cultura brasileira, manipulando todos os rótulos associa-los às idéias de Freud, mas com propostas de conteúdo totalmente alheio aos princípios freudianos básicos, em uma tentativa de monopolizar para si a prática psicanalítica e alijar do mercado todas as demais instituições.

Deixando de lado práticas de consumada má-fé, reflitamos sobre contestações sérias e sofisticadas, surgidas com o auxílio da própria Psicanálise. À medida que as idéias e a prática freudianas foram incorporadas ao saber da instituição de ensino oficial - a universidade - por que devem ainda existir as sociedades psicanalíticas? Não sendo mais a Psicanálise uma romântica atividade marginal, mas uma atividade burguesa atrelada ao saber oficial, compensa o custo de manutenção das sociedades?

A defesa das instituições psicanalíticas necessita de uma tripla argumentação: contra a universidade, concorrente financeiramente fortíssima se comparada ao diminuto tamanho das sociedades psicanalíticas; contra as entidades espúrias mencionadas acima, que tendem a abastardar tanto a Psicanálise como o saber universitário; e contra as próprias sociedades psicanalíticas, que se esquecem ser a fundação institucional algo não do passado, mas refeito a cada instante. Para distinguir as diferenças entre o ensino universitário e o das sociedades psicanalíticas, consideremos os três itens que constituem o tripé de uma formação: o curso teórico, a supervisão e a análise pessoal. E para discorrer sobre esse tripé também será necessário descrever um pouco os extremos - e os defeitos - dos modelos desenvolvidos pelas instituições psicanalíticas ao longo de um século.

 

A Transmissão da Teoria

No ensino universitário a Psicanálise, além de estar diluída na grade curricular dos cursos de graduação em Psicologia, e quase completamente ausente em outras graduações como a Medicina, é lecionada como uma dentre muitas teorias psicológicas. Tal enceno tende a ser ministrado de modo esquemático e muito aquém do que pode ser transmitido em uma formação, uma vez que esta constitui uma pós-graduação lato sensu. A prática mais usual do discurso universitário em nível da graduação é a da diluição. Mas, além da diluição, o discurso universitário tende a coisificar o outro a partir do saber, psicologizando a teoria psicanalítica e configurando o que Lacan designou discurso do Mestre1, como se o saber pudesse ser completo e fechado, objetivado e dessubjetivado, sem lacunas ou ausências.

Também existem, em número crescente, cursos de Psicanálise - em sua maioria apenas de Teoria Psicanalítica - em nível de pós-graduação, seja stricto sensu (mestrado e doutorado) ou lato-sensu (especialização). No segundo caso o ensino tende qualitativamente a diferir pouco da graduação, com todos os percalços já mencionados. Embora os cursos apenas teóricos lato sensu sejam a maioria, vários outros também apresentam uma parte prática, alguns em diferentes propostas de aplicação (família, casal, infância, adolescência, grupos). Mas, como ressaltaremos mais adiante, esses cursos quase sempre apresentam muita teoria e raramente possuem uma contrapartida eficaz para o exercício da clínica. Quanto aos mestrados e doutorados, mais teóricos ainda, quando não explicitamente apenas em Teoria Psicanalítica, é a prática usual do discurso universitário ao nível da pós-graduação stricto-sensu a super-concentração teórica, freqüentemente bordejando o abismo da paranóia.

É claro que uma Formação Psicanalítica pode ministrar a teoria psicanalítica com todos esses defeitos, indo desde o extremo de reduzir a riqueza da teoria em uma apostila de idéias prontas para ser decoradas, até o outro extremo, o da teorização rocambolesca que, em nossa tradição bacharelática, confunde o confuso com o sofisticado. Acreditamos que o antídoto ideal é sempre a leitura direta dos textos - seja de Freud, Klein, Winnicott, Lacan ou outros autores. Ítalo Calvino2 chama a atenção que os clássicos são constitui-los por aqueles textos que por mais que já tenhamos deles escutado, por mais que sejam uma referência cultural, quando diretamente os lemos, sempre nos surpreendem como sendo deferentes do que supúnhamos. O que sejam os clássicos varia de leitor para leitor, mas seu efeito é que após a leitura jamais retornamos ao estado anterior. Já Roland Barthes3 assinala que toda interpretação prévia é uma forma de culpabilizar o leitor. Freud, além de notável como escritor (o que lamentavelmente foi perdido nas péssimas traduções disponíveis no Brasil), tendo se identificado com o texto, e identificando o leitor com o texto, de fato tinha por meta tanto a desestabilização quanto uma relação transferencial. O texto freudiano foi criado para ser algo que não se possa ler impunemente.

Desde Sócrates que a pedagogia não pode ser pensada a sério sem que se tenha em conta a relação transferencial com o professor. Muitas vezes, mais do que o conteúdo transmitido, o que importa aos alunos é a forma como é transmitido e como o professor relaciona-se com o que transmite, se verdadeiramente ama o que leciona e se não mistifica as lacunas de seu não-saber. A relação transferencial que a leitura do texto freudiano estabelece com o leitor poderá ser ampliada pela relação transferencial que os alunos estabelecem com o professor que ministra os seminários sobre esse texto. Para que tal ocorra, quem leciona Freud, além da intimidade com o texto, não pode fechá-lo em interpretações que o reduzam a fórmulas feitas, mas permitir a recriação do percurso da descoberta e das descobertas da Psicanálise. Por sua vez a relação do professor com a instituição será consciente ou inconscientemente percebida pelos alunos. Por último, toda esta cadeia confluirá, por bem ou por mal, sobre a instituição.

Por isto discordamos de que a leitura de Freud, principalmente ao início da formação, tenha de ser acompanhada de qualquer outro texto que não dicionários de consulta; toda outra tentativa, como, por exemplo, acompanhá-lo simultaneamente com textos de Lacan, já constitui uma censura, uma culpabilização de outras interpretações possíveis. Não que se tire o mérito de Lacan, mas ele deve ser lido após Freud. A tática do acompanhamento do texto por outro interpretativo é semelhante à interpretação da Bíblia pelos dogmas da Igreja Católica, que tendo reduzido o texto ao sagrado exige uma interpretação unívoca. E para Lacan os deuses são o Real, logo um Freud dogmatizado também ocupa o lugar da psicose. A leitura acompanhada por uma interpretação simultânea exclui as múltiplas leituras provocadas por uma obra aberta, assim como obscurece o grau de estranhamento necessário para que cada uma seja sempre nova e, ao final, insatisfatória. O texto freudiano merece múltiplas leituras: literárias, antropológicas, filosóficas, históricas e, até, psicanalíticas. E, medo maior, que do estranhamento provocado pelo texto outros possam lê-lo e descobrir coisas que não li ou não vi, que firam meu narcisismo de achar que li Freud, o incorporei (incorporação oral) e agora ocupo seu lugar.

Mas ao texto sacralizado, discursos do Mestre e da Universidade a enésima potência, nada falta, respostas são encontráveis para todos os problemas. Obtemos a satisfação narcísica de ser os donos de "O Conhecimento", associada ao pensamento mágico de possuirmos a chave para a solução de quaisquer problemas. Situação bem diversa da que cada candidato a analista encontrará nos vários enigmas que nenhuma teoria completamente solucionará, enigmas em que cada paciente solicita uma resposta que não está no terapeuta, e mesmo na análise pessoal, em que sempre algo não vai se encaixar no discurso freudiano ou qualquer outro, e só no do inconsciente.

Diante desses enigmas podemos lidar com o texto de Freud indo desde a ironia de um Jorge Luis Borges real, escritor cego que continuou amando os livros e a literatura e foi nomeado Diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, até um Jorge de Burgos, o bibliotecário cego do romance O Nome da Rosa de Umberto Eco, que literalmente comeu um livro raríssimo e envenenado-se só para que ninguém mais pudesse lê-lo.

 

A Transmissão da Prática Clínica (I) - A Supervisão

Quanto à supervisão, não há grande diferença em relação às mazelas da transmissão da teoria. Nos serviços de Psicologia Aplicada dos cursos de graduação em Psicologia, além da diluição necessária da clínica em psicoterapia, tanto pela inexperiência do aluno quanto pela exigüidade do número semanal de sessões, há a freqüente diluição do estágio como um dentre vários estágios. Claro que se trata de uma necessidade básica do curso de graduação em Psicologia, cuja meta é formar Psicólogos para as mais diversas formas de atuação profissional, e não a de formar psicanalistas. Mas há dois outros fatores que são freqüentemente relevados. O primeiro deles é a questão do tempo limitado e curto das terapias nas instituições universitárias, o que é de conhecimento dos pacientes. Tal limitação funciona como um entrave à livre associação e à transferência. O que não é de todo negativo, possuindo um lado saudável para o paciente, desde defendê-lo de análises selvagens até de protegê-lo de angústias de separação que são impossíveis de ser trabalhadas em tempo tão exíguo. Por este mesmo motivo surge ou se intensifica o segundo fator, que é o reforço da transferência com a instituição de atendimento em detrimento da transferência com o terapeuta. Movimento também favorável ao paciente, uma vez que os estagiários passam, mas a instituição permanece.

Quanto às pós-graduações stricto sensu, nada há a declarar nesta área, uma vez que até o presente constituem cursos quase que exclusivamente teóricos. Em relação aos cursos de especialização lato sensu, sejam denominados especializações em Psicologia Clínica (e apesar do nome genérico há especializações de orientação exclusivamente psicanalítica) ou Psicoterapia Psicanalítica ou de outra forma (exclui-los aqueles apenas em Teoria Psicanalítica, que incorrem, em menor grau, nos mesmos problemas dos Mestrados e Doutorados), há vários modelos, dos quais não podemos argumentar sobre todos, por não conhecer todos os cursos que existem em nosso país. Mas daqueles que temos conhecimento, além da duração global bem menor que os ministrados pelas sociedades psicanalíticas, com uma carga horária global que costuma ser um quarto ou menos da média das formações, muitos seguem o modelo acadêmico, em que mesmo advindo uma parte prática ela é de duração muito inferior à parte teórica, e/ou incorrem nos mesmos problemas de douração da terapia já considerados quando falamos da graduação da Psicologia. Há mesmo o caso de se considerar que uma especialização possa ser realizada com o acompanhamento de apenas um primeiro e único caso, à semelhança das análises de controle preconizadas pela International Psychoanalytical Association.

A supervisão na formação psicanalítica, desde que não caia no erro de considerar-se de fato uma visão superior através da qual o supervisor pense grosseiramente em estabelecer um modelo identificatório, pode a longo prazo tornar-se tão atemporal quanto a análise e o inconsciente. Mas, por mais que se procure não estabelecer um modelo, e sim permitir que cada candidato crie o seu estilo, não se pode negar que toda supervisão também tende a uma terapia de ego e um ideal de eu, o que não é de todo um fato negativo. Neste caso é importante não seguir certos modelos, como o da análise de controle, cujo nome em si já denuncia tudo. Um caso permanentemente levado ao supervisor constitui algo que é sempre do conhecimento inconsciente do paciente (às vezes até mesmo consciente). Nestes casos o candidato está nas mãos (ou garras) do paciente, procurando ao máximo agradar ao eu ideal de si mesmo, do supervisor e do paciente. Nada tão contrário à livre associação ou à atenção flutuante. Para que estas ocorram os casos devem ser levados livremente pelo supervisionando: quais casos, quanto de cada um e por quanto tempo deve ser sua escolha. Deste modo a necessidade de supervisão surge como uma demanda a partir de cada análise e não apenas uma obrigação para satisfazer a instituição. E toda relação transferencial estabelecida com o(s) supervisor(es) também recai sobre a instituição. Por este, dentre outros motivos, torna-se ainda mais necessário que à instituição caiba o mínimo de arbitrariedade possível, julgando apenas (e neste caso não há como não ser arbitrário) quantas horas totais de supervisão seriam necessárias: 97, 252,5, 333?

Considerando mais algumas imagens dos maiores psicólogos, isto é, dos escritores, é fácil ao supervisor funcionar como o dito de Carlos Drummond de Andrade sobre a experiência: um carro com os faróis voltados para trás. Melhor o Virgílio da Divina Comédia, iluminando para adiante o caminho de Dante, nomeando e dando segurança em relação ao que está sendo encontrado, por mais terrível que possa parecer, mas nunca obscurecendo a experiência do encontro.

 

A Transmissão da Prática Clínica (II) - O Divã

Uma vez que Freud considerava que na universidade pode-se ensinar algo sobre a Psicanálise, mas a Psicanálise só se aprende no divã, a análise pessoal constitui o fulcro da formação. Por questões legais e éticas, uma instituição universitária não pode exigir que seus alunos façam terapia, principalmente não pode dizer qual seria o tipo desta terapia, muito menos indicar terapeutas. Supõe-se que os candidatos a uma formação, além da maior idade e (nem sempre) experiência, formulem a partir de si mesmos esta demanda. Uma instituição psicanalítica pode e deve exigir condições mínimas de análise pessoal. O que é bem diferente de indicar para terapeutas um número exíguo (e caro) de profissionais - os famigerados didatas ou barões da Psicanálise - que possam ter algum tipo de poder sobre o candidato (decidir sobre o início dos seminários teóricos, quando iniciar o tratamento de pacientes e, o maior de todos poderes, solicitar o desligamento do candidato).

Mais de um século após o início da clínica de Freud, as mazelas da famigerada análise didática já são mais do conhecimento de todos do métier psicanalítico. Qualquer poder sobre o candidato, além de inibir a livre associação, possui, como a mais saudável de suas conseqüências, a construção de um belo falso-self. Kuppermann4 discorreu longamente sobre a impossibilidade de ser trabalhada a transferência negativa em uma análise didática nos moldes acima, bem como em se expressar a agressividade e o ressentimento, conscientes ou inconscientes, de uma situação em que a qualquer instante qualquer coisa dita pode se voltar contra si mesmo, e como estas conseqüências negativas são transferidas para a instituição psicanalítica. Sublinha esse autor que como qualquer traço considerado perverso era motivo para o desligamento da formação, a seleção nas instituições da IPA (sem que nos esqueçamos que durante algum tempo o CBP a copiou) teve por modelo o candidato normal, não levando em conta que alguém que se julgue dono desta característica jamais procuraria a Psicanálise. Levando a caricatura ao extremo, o modelo da análise didática guarda certas semelhanças com o Processo de Kafka.

Mas muito cuidado tem de ser tomado, mesmo quando não mais há a perversão da análise didática institucionalizada, com formas não menos perversas de relação de poder que sempre surgem na convivência institucional: a superposição com uma relação aluno/professor no ensino teórico, dificultando que no setting o discurso do terapeuta seja realmente o que foi denominado por Lacan de discurso do Analista, em oposição aos da Universidade e do Mestre; a interferência castratória que pode ocorrer na participação política necessária em todos os níveis institucionais; a apresentação de trabalhos em congressos, jornadas ou seminários, nas quais analista e analisando jamais serão juízes imparciais.

Por estes motivos, durante algum tempo pensou-se no extremo oposto da análise didática exigida pela IPA: uma sociedade em que, além de não tomarem qualquer decisão sobre os candidatos, os analistas fossem totalmente diversos dos profissionais que ministrassem a parte teórica. Tal foi durante alguns anos a tentativa do CBP-RJ. E, pelos relatos que nos chegaram, também não funcionou a longo prazo. Criou-se uma casta de analistas fantasmáticos, mas detentora real do poder institucional. Estes analistas raramente apareciam de corpo presente na instituição, o que conduzia a um não-investimento institucional pelos candidatos. Paralelo aos analistas fantasmas, criou-se um corpo docente constituído por uma coleção heterogênea de professores contratados, dentre os melhores (e mais bem pagos) do mercado, mas completamente descompromissados com a instituição, seduzindo os alunos para terem maior número possível de cursos e, eventualmente, também os seduzindo para uma identificação e/ou idealização de suas instituições de origem onde, dadas as diferenças de formação e dado o não-reconhecimento mútuo das instituições, os candidatos de outra instituição jamais poderiam plenamente ingressar. Em formação reativa ao Processo construiu-se O Castelo.

Estará a relação entre a necessidade da análise pessoal e a instituição sempre se convertendo no imenso inseto de A Metamorfose? De certo modo esperemos que sim, porque a conjunção com o que há de mais público - a instituição - com o que há de mais privado - a análise pessoal - só pode gerar bichos estranhíssimos. Já que necessariamente eles existem, só resta lidar com eles com muito, muito cuidado.

Ao contrário do inseto kafkiano, exemplo clássico de castração e de uma metamorfose descendente, uma análise pessoal deve representar o oposto: uma metamorfose ascendente. O que quer que seja isto, uma análise pessoal é um dos enigmas que a cada um propõe a Esfinge. Dentre outras respostas, podemos refletir sobre a ênfase de Freud sobre a necessidade de perda da figura de um pai castrador. É a exigência da análise pessoal, associada à transmissão artesanal da teoria e da supervisão, que verdadeiramente diferencia a Formação Psicanalítica do ensino universitário de graduação ou pós-graduação. A exigência da análise pessoal constituí a única defesa contra o alerta de Freud de que: todos se tornam adeptos da Psicanálise, contanto que a Psicanálise os poupe.

Podemos também meditar sobre o risco que cursos exclusivamente teóricos podem constituir, na medida em que o conhecimento da Psicanálise sem a contrapartida da análise pessoal e da supervisão pode construir formidáveis núcleos de resistência. Seriam certas exacerbações teóricas um tanto quanto alucinadas fruto deste fenômeno?

 

À Guisa de Conclusão

Podemos esboçar algumas conclusões. Quanto à transmissão da teoria psicanalítica - seja por meio de um curso seqüencial, seja por cartéis ou grupos de estudo -, o ensino artesanal das sociedades psicanalíticas constitui em si uma defesa à diluição e à facilitação do discursos Universitário e do Mestre que é feita em universidades - estatais ou particulares - em função do gigantismo das turmas, dos interesses financeiros ou burocráticos das instituições de terceiro grau, e do desejo dos alunos, apoiado pela necessidade social de possuírem, acima de tudo, um canudo oficial.

Também deve ser ressaltado que as sociedades psicanalíticas, desde Freud, com todas as cisões e disputas da história do movimento psicanalítico, possuem uma genealogia comum. Constituem sociedades sem fins lucrativos, nas quais, mesmo aos trancos e barrancos, o processo democrático de gestão sempre foi uma preocupação indispensável e sempre resgatada, por mais longos que tenham sido os períodos em que ficou obscurecida. Comprova-se na prática o dito filosófico de que a essência da Verdade é a Liberdade. E isto diferencia as sociedades psicanalíticas de entidades espúrias e cursinhos objetivados no lucro fácil, sem compromisso com uma gestão democrática e com a genealogia freudiana.

Quanto à transmissão da prática - supervisão e análise pessoal -, além de a qualidade artesanal em princípio poder superar a montagem em série, um século de experiências com modelos indo até o oposto um do outro mostrou quão rica foi a experiência institucional. E que não há modelo ideal. Hoje, tudo isto nos parece um tanto óbvio, mas foi esse mais de um século tão rico de tentativas e erros que nos ensinou que, se não há modelo perfeito, ao menos quais são alguns dos principais defeitos e como minorá-los.

Além disto, o gigantismo a que tendem as instituições oficiais de ensino vai em direção oposta à necessidade de uma transmissão que não se dá apenas pela teoria, ou por uma técnica, mas pela transferência: com Freud através de sua obra, com outros autores, com o(s) analista(s) de cada um, e com os supervisores, na medida em que toda supervisão também tende a uma terapia de ego e um ideal de eu. Todas estas linhas transferenciais tendem a confluir em uma tela, cujo nó central deveria ser a instituição e cuja sobra o desejo de transmissão da Psicanálise. E quando se fala em transferência, está se falando de amor e ódio, mas aí já fica para outra história.

 

Bibliografia

1 LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 1992.

2 CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

3 BARTHES, R. Aula. São Paulo, Cultrix, 1997.

4 KUPPERMANN, D. Transferência cruzada - uma história da psicanálise e suas instituições. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

 

 

1 LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 1992.
2 CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
3 BARTHES, R. Aula. São Paulo, Cultrix, 1997.
4 KUPPERMANN, D. Transferência cruzada-uma história da psicanálise e suas instituições.
Rio de Janeiro: Revan, 1996.