ANCHYSES JOBIM LOPES *  

O Lugar da Estética na Educação - Perspectivas e Desafios –

O método fenomenológico-existencial e a contribuição da psicanálise para a construção de uma epistemologia da imagem artística.

Conferência apresentada no Concurso para Professor Titular de Filosofia da Educação, Faculdade de Educação, UFRJ, Fevereiro de 1998.

Parcialmente publicada em: Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, nº 31, Julho 1998.



 

Anchyses Jobim Lopes

Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
Círculo Brasileiro de Psicanálise

 

 


Introdução
Deve ser tarefa da Filosofia fornecer subsídios para uma reflexão crítica em determinada área de conhecimento. Tal reflexão tem por meta ser o ponto de partida para uma fundamentação mais sólida desse saber. A reflexão deve possuir por objetivo mais que uma dúvida meramente teórica, mas questionar os pressupostos teóricos que possam estar servindo de esteio para determinada prática. Simultaneamente, também é tarefa da Filosofia fundamentar a ampliação de novas áreas de conhecimento, servindo de alicerce a novas práticas.

Os pressupostos teóricos, se não forem plenamente desvelados, manterão a prática enquanto hegemonia de interesses de determinados grupos ou classes. Ancorada com firmeza em uma teoria que seja o menos possível um reflexo ideológico, melhor apresenta a prática instaurada oportunidade em ser um bem comum. Do mesmo modo, tendo como ponto de partida uma fundamentação sólida, e não o mero crescimento desordenado de interesses particulares, melhor pode a prática desenvolver-se de modo coerente e democrático, constituindo também um bem comum.

Dentre todos os bens comuns, destaca-se a Educação como o mais importante: causa e efeito de toda e qualquer possibilidade de justiça e Cidadania. Todos os demais bens e conquistas sociais podem ser relativizados, e efetivamente o são. Sem o acesso à Educação, relativizar constitui o primeiro passo para que justiça e Cidadania permaneçam conceitos ocos ou regridam a um plano meramente formal. Deve ser tarefa da Filosofia, fundamentando criticamente a prática, ao mesmo tempo que é fecundada e renovada por essa prática, fornecer subsídios para abrigar, proteger e ampliar o espaço deste que é o mais importante entre os bens comuns: a Educação.

Tendo por meta tais pressupostos, o presente trabalho direciona-se à reflexão teórica. O trabalho de campo, a metodologia para pesquisa, são indispensáveis à Educação, também inteirando nossa experiência docente. Sem reflexão o experimento permanece cego enquanto prática; desprovida de comprovação empírica, qualquer teoria permanece oca. Se, por necessidade do próprio tema e da presente finalidade desta exposição, permaneceremos mais no plano abstrato e formal da Filosofia, deixando em aberto os meios para sua futura aplicabilidade, a referência à realidade será uma constante.

Para cumprirmos nossa tarefa, primeiramente dissertaremos sobre quais são os conteúdos da Estética, enquanto disciplina filosófica, bem como em relação às disciplinas afins. Uma vez delimitada a área teórico-prática da Estética, devemos procurar sua conceituação, bem como os métodos mais adequados para efetivá-la. A direção a ser tomada, então, será a de uma breve exposição sobre questões que consideramos essenciais enquanto desafios para a Educação contemporânea - desafios todos associados a graves questões éticas.

De posse da delimitação, conceituação e métodos da Estética, poderemos ousar uma nova perspectiva nesta área. Face aos obstáculos com que se defronta a Educação, a esta perspectiva será essencial a possibilidade de fundamentação de uma Ética - fundamentação que terá por meta tanto melhor embasar o lugar da Estética na Educação quanto fornecer algumas propostas concretas de enfrentamento dos desafios enumerados.

O Lugar da Estética na Filosofia : Conteúdos e Relevância
O maior número possível de formas e técnicas de expressão artística deve fazer parte dos currículos de primeiro e segundo graus, tendo por meta o pleno desabrochar de todas potencialidades criativas. Alguns indivíduos - poucos - tornar-se-ão artistas profissionais; para a maior parte, o objetivo é fornecer meios de expressão que complementem, através da expressão artística, qualquer atividade profissional. Mas não é nosso propósito discorrer sobre a Educação Artística como fornecedora de um elenco de disciplinas de conteúdo próprio. Os conteúdos da Estética, como disciplina filosófica, situam-se também no plano dos conteúdos da Educação Artística, mas devem ir além: estabelecer um vetor que fundamente a Filosofia e desta propor fundamentos para a Educação.

Observamos pessoalmente como, desde o primeiro grau à Universidade, o ensino da Arte e da História da Arte atrai e desperta o fascínio de alunos dos mais variados matizes e objetivos, e a quase todos, em graus variados de interesse, continua fascinando por toda vida. Possivelmente a História da Arte, desde suas primeiras noções, mais que a história dos acontecimentos políticos e sociais, ou que a história das idéias e das técnicas, fornece a vivência essencial para a compreensão da história humana como dinâmica, orgânica, vivificando o presente, não mero museu de relíquias e curiosidades. Os conteúdos da Estética, como disciplina filosófica, situam-se também no plano dos conteúdos da História da Arte, mas devem ir além: estabelecer outro dos vetores que fundamentem a Filosofia e desta propor fundamentos para a Educação.

Em qualquer grau do ensino, para qualquer conteúdo, as mais diversas formas de arte podem embasar o aprendizado. Talvez o exemplo mais impressionante das últimas décadas, que transcendeu e afetou o ensino em todo o mundo contemporâneo, no plano da experiência estética, tenha sido a aplicação de cores, símbolos e ícones, da transformação de linguagens lógicas e matemáticas em linguagens de fácil apreensão visual: a criação de todo sistema windows, permitindo a avassaladora extensão da informática. Apesar de que a experiência estética, como método e essência da comunicação, seja tema básico e apaixonante para qualquer debate sobre Educação, também não é nosso objetivo discorrer sobre a aplicação da arte ao ensino como Metodologia - mesmo no caso em que a Arte, mais que um método aplicado acessoriamente como técnica de aprendizado a qualquer saber, seja empregada como forma de conscientização política. Os conteúdos da Estética, como disciplina filosófica, situam-se também no plano dos conteúdos da Arte como Metodologia do Ensino e formadora de Cidadania, mas devem ir além: estabelecer outro dos vetores que fundamentam a Filosofia e desta propor fundamentos para a Educação.

Um dos temas contemporâneos mais complexos e apaixonantes é o da Ecologia. Mais que apaixonante, apresenta-se como vital para a sobrevivência da humanidade. Da Química ao Direito, da Psicologia à Astronomia, a descoberta e a aplicação do conhecimento do meio ambiente, como sistema e organismo, modificou todas as perspectivas profissionais e forneceu uma nova dimensão ética. A arte contemporânea não foi menos atingida tal, por exemplo, a obra de Frans Krajberg. A dimensão da cultura já não mais pode ser vista como oposta à da natureza. Desde perspectivas filosóficas, como a Analítica Existencial de Martin Heidegger (1983,1986), até Teorias Sistêmicas, como a de Edgar Morin (s.d.), encontramos uma continuidade entre natureza e cultura: organismos gerando organismos cada vez mais complexos, complexidade traduzida em diversidade e riqueza crescente de formas e criações. Um estudo sério das tendências e aplicações da arte contemporânea não pode deixar à parte a Ecologia. Os conteúdos da Estética, como disciplina filosófica situam-se também no plano dos conteúdos da Ecologia e das teorias sistêmicas, mas devem ir além: estabelecer um outro vetor que fundamente a Filosofia e desta propor fundamentos para a Educação.

Na sua relação com a Filosofia, mais que uma simples disciplina, a Estética contemporânea pode situar-se como pilar de sustentação. Não se trata mais de aplicar à Arte um sistema alhures construído, tal como fizeram Kant ou Hegel. O século XX caracteriza-se como aquele em que o conhecimento sobre o Ser Humano cresceu de forma avassaladora: desde o surgimento das múltiplas correntes psicológicas, do desenvolvimento da Psicanálise, da explosão de informações advindas da Etnologia, das Antropologias Cultural e Social, da Sociologia, incluindo-se também a explosão de novos conhecimentos da Biologia, da Genética e das técnicas da Medicina.

Desta forma, a Estética, de disciplina acessória, tornou-se fundante de uma Antropologia Filosófica e esta núcleo para várias, senão todas as correntes filosóficas deste século que, já quase ao final, permite uma ampla avaliação da perspectiva histórica de suas idéias. Para que uma antropologia possa ser considerada filosófica, deve, por um lado, ir além do conhecimento empírico e dos dados das ciências regionais, em direção ao grau de generalização e abstração necessários ao conhecimento filosófico, assim como, por outro lado, também procurar responder, mesmo que de modo parcial, às principais questões da Filosofia. E então, o estudo do Ser Humano e de suas criações conduz-nos a alguma tentativa de responder as três perguntas que, segundo Kant, resumem a tarefa da Filosofia: "O que posso conhecer ?" - questão da Epistemologia; "O que devo fazer ?" - questão da Ética; "O que me é permitido esperar ?" - questão da Metafísica em sua acepção mais usual. Essas três questões para Kant, em sua Lógica (1982), remetem a uma quarta: " O que é o homem?" - questão através da qual as anteriores remetem-nos à Antropologia Filosófica enquanto âmago da Filosofia (Heidegger, 1981).

Autores tão diversos como Martin Buber, Ernst Cassirer, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Gaston Bachelard, Theodor Adorno, Ludwig Wittgenstein, ou seja, desde o que foi rotulado como existencialismo e filosofia existencial até a teoria crítica da Escola de Frankfurt, algumas constituindo tendências filosóficas exacerbadamente antagônicas; desde a proposta de uma nova perspectiva ontológica até as epistemologias e teorias da linguagem surgidas no século XX, com outros opositores não menos exacerbados, todos - utilizando as mais diversas terminologias - voltaram-se de uma forma ou de outra para o estudo do Ser Humano. No entanto, mais do que ao Ser Humano e suas múltiplas formas de manifestação, todos esses pensadores voltaram-se, em graus variados, especificamente em direção ao estudo da Arte. Alguns atribuíram a esta maior destaque, como Cassirer, que via na Arte a forma simbólica mais completa, ou Heidegger, para quem a análise da obra de arte constituiu um dos acessos privilegiados à fundamentação de uma nova Ontologia, ou Adorno, que defendia ser a Estética inseparável à uma teoria crítica originária de uma das vertentes do marxismo.

Mesmo para aqueles que se opõem ao papel da Ontologia - a questão do Ser - enquanto cerne da Filosofia, os pensadores da Escola de Frankfurt ou os defensores da Filosofia Analítica, por exemplo, tornou-se impossível que seja articulado algum discurso filosófico que não tome por base o que - lato sensu - podemos considerar como Antropologia Filosófica. E sem a Estética, não é possível qualquer forma coerente de Antropologia Filosófica. O século XX também caracterizou-se pelo surgimento dos grandes sistemas psicológicos, notadamente a Psicanálise de Sigmund Freud e todas as escolas de algum modo dele historicamente derivadas, tal a Psicologia Analítica de Carl-Gustav Jung ou a Análise Existencial de Ludwig Binswanger, para citar apenas duas entre as mais conhecidas. Todas as grandes correntes psicológicas contemporâneas utilizam de modo maciço a Arte. Na maioria das vezes a compreensão psicológica nasceu de um uso utilitário: a arte como meio e exemplo para demonstrar a validade de interpretações dos mais variados matizes. Apesar desta tendenciosidade inicial, as escolas psicológicas terminaram por impor perspectivas riquíssimas de análise e compreensão de todas as formas de manifestação artística. Autores ainda mais recentes, mesmo de modo periférico - por exemplo, Michel Foucault ou Gilles Deleuze - influenciados por Nietzsche, Marx e Freud, trabalharam sobre a questão estética.

A Estética : Conceituação e Método
Tendo demonstrado a importância da Arte e da Antropologia Filosófica para os principais pensadores e correntes do século XX, necessita-se definir o que seja a Estética. No século XVIII, Baumgartem retirou o termo do grego aisthésis para nomear sua obra Aesthetica, que tinha por objeto a análise e a formação do gosto. Está hoje superada a definição de que a Estética seja a ciência do belo. A partir do século XIX, com Charles Baudelaire poetizando sobre carniça, Edgar Allan Poe horrorizando os leitores com seus contos - apenas para citar exemplos literários - a Estética em muito ultrapassa apenas o juízo ou apreciação sobre a beleza, pelo menos da beleza em seu sentido usual. Há o sublime, há o espantoso, há o grotesco e há até mesmo o feio - seja no expressionismo alemão, seja nas várias correntes surrealistas, seja nas manifestações pós-modernas por exemplo - como objetos da Estética. Escreveu o poeta Rainer Maria Rilke: "que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos ?"

Ultrapassando a questão do belo, a Estética propôs-se então a determinar em um plano muito mais amplo qual a natureza ou quais as características comuns encontradas na percepção dos objetos que provocam a emoção estética. É a problemática definição do que seja uma emoção, notadamente uma emoção estética, que revela o quão próximo a Estética encontra-se da Psicologia. A proposta de uma nova Estética deve abranger a questão da emoção estética em sua vertente psicológica, principalmente aproveitando os conhecimentos trazidos pela psicanálise freudiana e por todas as demais escolas que de algum modo historicamente derivaram da de Freud ou utilizaram alguns de seus pressupostos. A diferença entre Filosofia e Psicologia estaria muito mais na finalidade que do método em si. No caso da Filosofia, tal como propusemos, todo e qualquer conhecimento psicológico pode ser utilizado; fundamental é a direção e o objetivo da análise. A Estética diferencia-se como parte da Filosofia, e não de uma Psicologia da Arte, quando busca fundamentar uma Antropologia Filosófica, e a partir desta ou uma Ontologia ou uma Teoria Crítica.

A proximidade entre a Estética e a Psicologia da Arte torna compreensível por que o conhecimento psicológico, notadamente aquele originário das idéias de Freud, pode auxiliar-nos tanto na compreensão da emoção estética. Mas a Estética tal a defendemos necessita valer-se de outros instrumentais, que também a tornarão indispensável para a compreensão do seu lugar na Educação. Outro destes instrumentais deve ser o método fenomenológico. Aproximamo-nos mais da Fenomenologia, em sua proposta inicial de Edmund Husserl, na medida em que compreendemos que, quando o Ser é realmente originário e fundante, Ser e fenômeno pertencem ao mesmo sentido, do qual não podem ser dissociados. A este sentido podemos denominar intencionalidade, pedra angular da Fenomenologia, uma vez que impele a consciência a ser sempre consciência de algo, um "estar-dirigido-a", em que simultaneamente o objeto desta consciência só se desvela enquanto "objeto-para-um-sujeito", isto é, quando também dotado de alguma forma de intencionalidade. Mais que duas intencionalidades que se chocam ou se encontram, podemos defini-las como complementares.

Principalmente no caso da Estética, a intencionalidade desta consciência/objeto possui uma dinâmica própria de presentificação, de desvelamento, em que este "estar-dirigido-a" não se revela completa ou instantaneamente. Podemos tentar compreender fenomenologicamente esta dinâmica da intencionalidade como um perpassar que no pólo subjetivo emerge desde as instâncias psíquicas mais profundas, com seus vários significados e símbolos inconscientes, e no pólo objetivo emerge através dos vários significados em que se encontra submergido o Ser Humano, sua cultura, sua ideologia, seu papel sócio-econômico, todo o histórico-cultural que precede sua existência.

A visada fenomenológica da dinâmica da intencionalidade dota-a de múltiplos significados, tornando o fenômeno - principalmente o fenômeno estético - um infinito caleidoscópio em movimento perpétuo. Deste modo, o fenômeno estético jamais pode ser caracterizado por uma única forma de compreensão, por um único significado, por uma perspectiva dogmática ou autoritária.

Entretanto, a metáfora do caleidoscópio esgotar-se-ia na medida em que fosse reduzida à percepção de formas belas e agradáveis. De modo análogo, apesar de tanto a Psicologia quanto a Fenomenologia serem essenciais à busca da unidade do saber, o lugar da Estética na Educação não pode ser reduzido pela Psicologia apenas à questão da emoção, bem como o método fenomenológico não pode reduzir a Estética apenas à análise da intencionalidade da obra de arte e de seu sujeito cognoscente.

Outra das vertentes essenciais à Estética seria a perspectiva trazida por um dos métodos construídos a partir da Fenomenologia Husserliana: o método fenomenológico-existencial ou, simplesmente, existencial. Além da superação da dicotomia sujeito/objeto proposta originalmente pela Fenomenologia, podemos considerar Existencial a Filosofia que também busca a realidade como algo mais que um objeto frente a um sujeito. A procura existencial compreende a existência em seu caráter global, tomando por fundamento a dinâmica do tempo e da finitude, vivência cujo contato nos transforma e, ao invés de isolar do resto de nosso ser os meios para o seu conhecimento, integra na procura deste conhecimento o Ser Humano por inteiro. A filosofia existencial busca ontologicamente integrar Ser e Tempo e desta unidade pensar o Ser Humano enquanto Ser-para-a-Morte: a quase infinita gama de atitudes do homem diante da percepção de sua finitude. Privilegiada dentre estas atitudes está a criação - poiesis -, bem como a construção da dinâmica temporal da própria obra de arte.

As infinitas formas e cores criadas pelo caleidoscópio em seu perpétuo movimento simbolizam tanto a diversidade e o ecletismo de visadas, sentidos e interpretações que a Psicologia e o método fenomenológico fornecem à Estética, quanto a experiência, a vivência concreta da emoção estética que, integrando-nos em uma nova dimensão, nos transforma para sempre, tal é preconizada pela perspectiva existencial. Mas esta metáfora também nos ilustra na medida em que, apesar da criação de infinitas, jamais repetidas formas, o caleidoscópio sempre fornece a intuição de unidade, da imagem como um todo coerente. Entre os objetivos da Filosofia sempre deve estar presente o de fornecer essa unidade, uma visão de conjunto, uma organicidade ao conhecimento. Caso contrário, não atingimos o cume filosófico e permanecemos na instância de um saber regional.

A abordagem da emoção estética a partir das grandes contribuições da Psicologia, associada aos métodos fenomenológico e fenomenológico-existencial, do modo como os definimos, permite a proposta de uma nova Estética - nova no sentido de que propõe recuperar a partir da estética uma dimensão ética. Entretanto, vista por outro prisma, não se trata de uma questão nova; a correlação entre Ética e Estética data de Platão, mas após a crítica nietzschiana a solução platônica tornou-se inaceitável. Trata-se portanto de formular uma nova resposta a um problema antiquíssimo. Platão estabeleceu em sua idéia do Bem uma unidade entre beleza, justiça e verdade: tudo que é belo, quando caminhando em direção ao espiritual, necessariamente também é bom. A tradição judaico-cristã pode grosseiramente ser resumida pela mesma conceituação em sentido oposto. Se para os gregos tudo verdadeiramente belo é bom, para os autores do Velho e Novo Testamentos, todo bom é belo. Nietzsche demonstrou como, em qualquer uma dessas direções, a junção entre beleza e justiça é puramente arbitrária. O belo e o mundo autojustificam sua existência, segundo Nietzsche, sem a necessidade de qualquer idéia de justiça; a união dos dois conceitos teria sido sempre algo arbitrário. A crítica nietzschiana, aqui apenas mencionada, contra todos os valores ocidentais de beleza e justiça, tornou-se ainda mais aguda com a célebre frase de Dostoievski : "se Deus não existe, então tudo é permitido". Ambas as proposições podem contar com muitos defensores, mas não se pode pensar e formular alguma contribuição da Filosofia à Educação se essa contribuição não for alocada numa dimensão ética. Logo o lugar da Estética na Educação necessariamente implica também uma formulação ética.

Se as soluções platônica e judaico-cristã não mais respondem às principais necessidades práticas e teóricas de nossa época, torna-se necessária a busca de novas respostas, mesmo que previamente saibamos, pela história da Filosofia, que serão respostas provisórias. De qualquer modo, no século de Auschwitz e Hiroxima, para não mencionarmos exemplos nacionais de menor importância global, mas não por isso menos graves, consideramos imperioso implementar a partir da Estética uma dimensão ética. Apenas deste modo podemos contribuir para outra questão essencial, que é a da dimensão ético-política da Educação na construção da Cidadania.

Alguns Desafios para o Lugar da Estética na Educação
Entre os objetivos da Filosofia sempre esteve o de fornecer uma unidade, uma visão de conjunto, uma organicidade ao saber, propósito que contemporaneamente deveria ser ainda mais imperioso. O século XX caracteriza-se por uma brutal ampliação do conhecimento - ampliação que se assemelha a um crescimento mais exponencial que algébrico; ampliação que foi tanto produto quanto causa de uma vertiginosa especialização, seja nas áreas rotuladas de científicas ou exatas, seja naquelas conhecidas como ciências humanas ou sociais.

Mas especialização significa também fragmentação do conhecimento, fragmentação que reduz a educação a mero veículo de técnicas, que reduz o professor ao papel de um técnico especializadíssimo, mas em realidade um simples técnico; papel que tende a reduzir o educador em mero transmissor de informação. Enquanto simples transmissor de informação, com o único propósito de adestrar mão-de-obra para o mercado de trabalho, pode-se equivocadamente até supor que, substituído pela Informática, a figura do professor seja mesmo dispensável. Sem dúvida, a redução do educador a mero transmissor de informações técnicas o torna desprovido de qualquer pensamento crítico ou visão de conjunto, logo também o despoja de ser um formador de Cidadania.

A especialização técnica e a fragmentação do conhecimento aparentemente constituem um processo global, acentuado pelas disparidades sociais e, em círculo vicioso, ampliando ainda mais as desigualdades sócio-econômicas. Em nosso país, uma minoria de profissionais fruto de educação especializadíssima convive com uma maioria de pouca, quase nenhuma especialização, quando não apenas possuidora de alguns poucos anos de precária escolaridade, população em sua grande parte excluída dos benefícios de um processo educativo que possa ser considerado ao menos satisfatório. Mais recentemente tem sido observado um provável limite para muitas áreas de excessiva fragmentação. Ao desemprego em massa, em grande parte causado por fatores políticos e econômicos, associa-se um processo de especialização que rapidamente provoca a obsolescência das tecnologias e até do próprio homem. O generalista, a visão global, o profissional trans ou multidisciplinar seria vital nas mais variadas áreas. Como pode a Estética auxiliar a Educação na produção desse saber, de modo que possamos tal Paulo Freire, caracterizar que o ensino "não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção ou sua construção" (1997)?

Buscar uma resposta para esta questão necessita primeiro que se aclare um pouco a estrutura do conhecimento moderno e a possível origem de seu limite e de suas crises. Podemos utilizar a terminologia do físico e teórico da história das ciência Thomas Kuhn, no hoje clássico A Estrutura das Revoluções Científicas (1978). Para esse autor, o conhecimento especializado, denominado "ciência normal", por basear-se nas normas já estabelecidas e universalmente aceitas de determinado modelo científico, aprofundando os cânones paradigmáticos desta área de saber, leva-a até o extremo limite possível.

Mas a "ciência normal" também possui seus limites, na medida em que mais e mais problemas insolúveis surgem a partir do próprio aprofundamento do saber. O paradigma necessariamente tende à sua própria exaustão. Só com a criação de um novo modelo, de um novo paradigma, poderão progredir o conhecimento e a tecnologia. A criação desse novo paradigma, observou Kuhn ao longo do desenvolvimento das ciências, além de ser traumático e causar uma descontinuidade histórica - a "Revolução Científica" - surge a partir de um profissional pouco comprometido com o paradigma anterior que deve ser superado.

Mas, acima de tudo, esse profissional seria sempre fruto de uma formação multidisciplinar, tendendo ao ecletismo, que permite o uso dos saberes mais variados para através deles fecundar, por meio de um novo paradigma, a ciência que se tornara estéril. O fundador de um novo modelo conceberia em sua ciência uma visão diversa do todo, uma visão horizontal, uma nova organicidade, a partir da qual um novo conjunto de leis poderia ser aplicado. Inicia-se novamente a tarefa da "ciência normal", aprofundando verticalmente o novo paradigma. Todo um novo ciclo tem então início. O desenvolvimento exponencial do conhecimento, bem como o risco crescente de obsolescência do profissional excessivamente especializado, tem validado mais e mais, nas últimas décadas, as idéias propostas por Kuhn. Por este motivo, o generalista, possuidor da visão global, o profissional trans ou multidisciplinar, deveria ser vital para as mais variadas áreas. De modo análogo, a tarefa da Filosofia enquanto busca da unidade e organicidade de conhecimentos aparentemente dispersos, há muito deixou de ser mera veleidade intelectual, para tornar-se fundamental. Na prática, observa-se outro fenômeno correlato ao da especialização e fragmentação do saber e do trabalho: o vertiginoso crescimento da quantidade de informação trazida pelo avanço da Informática, pelos meios de comunicação, até mesmo por novas demandas de diversão e consumo. Computador, cd, cd-rom, videocassete, videogame, Internet, e sabe-se lá quantas novidades bem próximas, tomaram e cada vez mais tomarão conta do cotidiano. E tornam-se parte deste cotidiano não apenas nas classes mais privilegiadas mas, em graus variados, em todas classes sociais urbanas. Desde Guttemberg, são inquestionáveis a difusão e a democratização do conhecimento proporcionadas pelo avanço metodológico na área da comunicação. Da mesma forma, não há dúvida de quanto a Informática pode auxiliar a metodologia do ensino.

Mas também é de fácil constatação o quanto a informação trazida pela revolução da Informática é transmitida de forma fragmentada, na maioria das vezes acentuadamente visual. Esse tipo de informação, propagada com um mínimo, quando não uma ausência completa de verbalização, também costuma caracterizar-se por um conteúdo notoriamente agressivo, associado muitas vezes a uma sensualidade desprovida de outro propósito que o de simples chamariz, e possui por meta o mero lucro imediato. Situações bastante objetivas, como a apresentação a crianças e adolescentes de jogos de extrema crueldade e violência, a utilização da Internet como veículo da exploração sexual de crianças, a manipulação e persuasão do usuário pela mídia, o risco de perda do sigilo e de privacidade, bem como a transmissão, através das novas redes de comunicação, de conhecimentos desprovidos de qualquer certeza empírica ou como impermeáveis à dúvida teórica ou política, constituem alguns dos desafios para a Filosofia enquanto fornecedora de fundamentos para a Educação e, mais especificamente, para a Filosofia enquanto fundadora de uma Ética.

A todos estes fatores associam-se outros desafios, tal, por exemplo, a demanda por uma educação mais voltada para o Ser Humano. Participando do Programa Nacional de Incentivo à Leitura / Fundação Biblioteca Nacional, constatamos pessoalmente, ao lidar com professores do primeiro ao terceiro graus, principalmente em cidades e estados da Federação fora do eixo das capitais Rio-São Paulo, um grande questionamento sobre o que seria modernidade em Educação. Contrastando com todo um discurso oficial, que enfatiza há várias gestões as denominadas áreas tecnológicas sobre aquelas denominadas humanas ou sociais, observamos o quão intensa e reprimida é a procura pelos saberes dessas últimas.

O exemplo direto, do qual tivemos experiência nas áreas da leitura e da literatura, mostrou-nos a demanda por um conhecimento mais sólido, não dos autores supostamente "em moda", mas de autores clássicos, brasileiros ou não. Mesmo professores de primeiro grau do interior de estados do Nordeste e do Norte, plenamente cientes de sua precariedade de formação, enfrentando dificuldades materiais só críveis quando diretamente relatadas, possuem a mais clara objetividade crítica quanto ao hiato entre o que são obrigados e o que realmente desejariam ler e ensinar. E sempre desejam uma maior solidez nas escolhas didáticas, uma cultura que priorize o espaço político, bem como uma firme oposição à suposta modernidade enquanto endeusamento e fetichismo da técnica e da rapidez, do consumo e do modelo sócio-econômico de um pseudo-liberalismo que tornam a cultura e o homem descartáveis. Buscam, enfim, maior solidez através do acesso a uma cultura que podemos nomear de humanística, não somente no sentido do antigo Humanismo Idealista, mas de um retorno a valores que fundamentem uma práxis.

Tendo estabelecido um relacionamento mais próximo a esses profissionais, foi-nos claramente perceptível que, subjacente à demanda por um retorno ao Humanismo (o que é bem diverso do beletrismo ou do academicismo), há a procura pelo restabelecimento dos valores éticos mais universais e antigos, uma procura indissociável pela organicidade e unidade do saber, sem a qual não podem firmar-se estes valores.

A partir do exemplo concreto de nossa realidade, tanto no plano mais amplo, da elaboração de um projeto em Educação, quanto no plano mais direto, da relação entre quem ensina e quem quer aprender, apresenta-se como essencial a busca pela visão de conjunto, pela organicidade do saber. Para uma proposta do papel da Filosofia no campo da Educação, elaborar este projeto constitui um desafio diretamente proporcional à fragmentação e à ênfase no suposto modernismo com que se defronta. Mais que um desafio para a Filosofia e para a Educação, um desafio à própria Estética, enquanto baluarte de um Humanismo não idealista e passível de fundamentar uma Ética.

A perspectiva de tal Estética e de seu lugar na Educação conduz-nos a outras questões. Uma delas é responder como pode a arte contemporânea, no processo que Ortega y Gasset há décadas já havia assinalado como desumanização da Arte, saciar a demanda por um novo Humanismo. A Arte não apenas reflete, mas também antecipa a sociedade da qual é fruto. Portanto, em nada é surpreendente que muitas de suas manifestações sejam interpretadas como agressivas, violentas mesmo ou tão abstratas, que deixariam de possuir qualquer referencial humano. Espantoso seria que toda manifestação artística contemporânea fosse inteiramente idílica e escapista, alienada por completo do mundo à sua volta. Além disto, a violência revelada pela Arte provoca algum grau de crítica e de concientização, primeiro passo para uma modificação do real, diferindo da violência transmitida por um "video-game", que, de modo repetitivo e compulsivo, morbidamente acentua a agressividade individual e social.

Ressaltemos, entretanto, que mesmo uma arte idílica e escapista possui uma função importantíssima, como analisou um dos principais expoentes da teoria crítica da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno. Em um mundo que aliena e coisifica o homem, tornando-o instrumento e mera cifra de modelos macroeconômicos, a Arte supostamente alienante e escapista apresenta a função essencial de ser um baluarte do Ser Humano, a função de manter a subjetividade face ao processo de reificação e fetichismo de que são dotados os bens materiais e a tecnologia.

O desafio da questão ética na Educação também foi discutido por Adorno em artigo de título bastante sugestivo: A Educação após Auschwitz (1995). A constatação ao longo da história é a de que toda e qualquer forma de conhecimento ou técnica sempre será de algum modo utilizada por pessoas ou grupos inescrupulosos, ou até como meio de coerção e como pilar ideológico e justificativa pelos mais bárbaros sistemas totalitários. Por mais bem intencionado que seja o fundador de algum paradigma de saber, seguramente alguém, algum dia, deturpará seu uso.

Desde Platão no diálogo Menon perpetua-se a questão de como ensinar a Virtude, que seria o mais importante, talvez o único bem realmente importante, a ser transmitido através de um processo educativo dialógico. De que modo pode a Arte, algumas vezes acusada de desumanizadora, fundamentar a Ética e a Educação? Neste ponto torna-se insustentável apenas a defesa de que o papel da Filosofia é o de fornecer uma visão do todo, uma organicidade ao saber. Sistemas totalitários podem, por algum tempo ao menos, apresentar alto grau de organicidade e coerência internas.

A acusação de totalitarismo volta-se contra a própria Filosofia. Para muitos, qualquer sistematização do saber, como os grandes sistemas de Kant ou Hegel, constrói uma visão autoritária do pensar e do agir. Mais do que isto, para Freud (1979), bem como para Horkheimer e Adorno (1989) tais sistemas filosóficos são em quase tudo semelhantes aos sistemas delirantes construídos por pacientes psicóticos: ao buscar uma explicação que englobe toda a realidade, violentam-na em função de desejos e patologias.

A utilização política institucionalizada da Arte sempre resultou em obras medíocres, que em pouco tempo não mais deixam vestígio. Essa arte de ocasião e interesses não nos preocupa, pois não perdura. Quanto à arte criativa, artistas e obras de arte que perdurem não podem ser acusados de totalitários - a não ser em uma acepção nietzschiana de que quanto maior for a grande obra mais impõe sua vontade de potência, ou então pela biografia de alguns artistas de primeiro plano que apoiaram políticos ou ideologias autoritários. No segundo caso, usualmente constata-se a importância e a permanência da obra apesar das idéias ou atitudes de seu criador.

Mas de que modo pode a Estética responder a todos estes desafios: rebater a crítica quanto à desumanização da Arte, auxiliar a recuperação dos ideais humanistas, fornecer uma unidade e organicidade do saber que não seja autoritária, ser um baluarte contra o uso perverso das técnicas e saberes? Há de se ousar uma nova proposta para a Estética, possivelmente um conjunto de várias novas propostas, com o objetivo de auxiliar a resolução de todos estes desafios.

A Proposta de uma Nova Estética
Consideramos que cabe à Filosofia da Educação tratar das questões epistemológicas, axiológicas e antropológicas concernentes à educação. Deste modo temos de fundamentar uma epistemologia da emoção e percepção estéticas como primeiro passo na direção de uma fundamentação ética.

Nosso trabalho realizado de Estética, em atividade prático-teórica docente e de pesquisa, em parte já publicado (Lopes, 1996), tem priorizado a literatura, principalmente a poesia. Contudo, não nos restringimos à poesia tal como hoje é usualmente definida: composições quase sempre curtas e escritas em verso. Utilizando a análise fenomenológico-existencial, conceituamos enquanto essência e intencionalidade da poesia o fenômeno lírico. A essência deste fenômeno constitui na construção do "espaço" intra-subjetivo ou "eu" lírico, que é criado ou recriado por meio da linguagem. Como foi assinalado por Heidegger, linguagem que, ao se meditar sobre a Filosofia, necessariamente leva a que se discuta a relação entre poetar e pensar.

Em poesia, a linguagem constrói-se por meio de um conjunto de som, ritmo e imagem. Em nosso trabalho, priorizamos a imagem em relação aos demais elementos em que pode ser decomposto o poético. O ritmo apresenta-se não apenas como produto da sonoridade verbal, mas basicamente como processo de construção da imagem. Esta é mais que simples representação plástica em nossa consciência. A imagem possui o dom de unir em si um ou mais conteúdos ideativos. Tais conteúdos não são idéias abstratas e desencarnadas, e sim idéias que se apresentam em si mesmas e de modo harmônico como estados afetivos. Uma vez que nossas emoções também são estados corpóreos - sensações -, o dom da imagem é o de unir no instante poético emoção e razão, corpo e mente.

A imagem desvelada por meio do poema apresenta-se não como estática, mas dinâmica, em contínua metamorfose, tanto em si mesma, quanto de uma imagem em outra. A linguagem poética, próxima à linguagem originária, análoga à da criança e do louco, tem por mérito transmitir e universalizar a imagem poética. Através da imagem, as idéias e emoções evocadas apresentam-se em harmonia de conteúdo e forma, colocam o eu do leitor-receptor em sintonia com o do autor-transmissor, transcendendo o individual em um eu-lírico universal. A linguagem poética torna-se capaz de desencadear no leitor ou ouvinte uma série quase infinita de associações.

Ao trabalhar com a imagem poética, demonstramos suas semelhanças e diferenças com a imagem onírica. À semelhança do sonho, a imagem poética é mutável, não representa realisticamente e sim por meio de deslocamentos e condensações, ou seja, por meio de metáforas e metonímias. Por sua capacidade dinâmica, utilizando figuras de linguagem representadas plasticamente, tanto o sonho quanto a poesia constroem símbolos. Permitindo acesso ao inconsciente, as imagens onírica e poética possuem o dom de fecundar a imaginação e a criatividade.

A principal diferença encontrada entre a imagem onírica e a imagem poética é a transmutação e universalização da imagem por meio da palavra na poesia. A linguagem, cuja própria essência, tal descreve Heidegger, funda-se no poético, universaliza a imagem. Deste modo foi-nos possível trabalhar com o poético onde quer que ele se encontrasse: fosse em meio das páginas de um romance, ou até mesmo de um texto filosófico.

Da mesma forma que o poético transcende o poema em sua acepção usual, seria possível transpor para demais formas de manifestação artística grande parte ou a maior parte de nossa proposta em Estética. Anteriormente foi mencionada a definição contemporânea do conteúdo da Estética enquanto a busca pela natureza ou características comuns encontradas na percepção dos objetos que provocam a emoção estética.

Em qualquer forma de arte, através dos mais variados meios e técnicas - linguagens não-verbais - é a imagem o desencadeante desta emoção. Ao falar de imagem, pensamos quase sempre em visão. Contudo, imagem pode ser definida como conjunto perceptivo, seja em qualquer um de nossos sentidos, seja em nossa imaginação. Mesmo no caso da música podemos falar em imagem, não apenas de imagens visuais ou lembranças evocadas por meio da composição, o que constituiria simples "música de programa", mas sim da composição enquanto imagem sonora. Tal universalidade permitiria generalizarmos que as várias imagens, evocadas por qualquer objeto artístico, constroem a intencionalidade da emoção estética, que, tal como foi descrita, constitui a chave para uma possível definição contemporânea do que seja a própria Estética.

À semelhança da imagem onírica, as várias imagens da Arte não obedecem às leis usuais de construção do pensamento em nossa consciência. Como o sonho, não há relação com a temporalidade cotidiana. O tempo da obra de arte é o tempo de construção de sua imagem, ou da metamorfose de uma imagem em outra. Desaparece também o princípio de não-contradição que rege nosso pensamento consciente (algo não pode simultaneamente ser seu oposto), como em alguns quadros de Picasso, em que perspectivas múltiplas e opostas podem coexistir sem contradição.

O que priorizamos, dentre as várias direções em que a análise fenomenológico-existencial da emoção estética pode conduzir, é a de sua vivência ao existencialmente modificar-nos, - modificação que pode ser descrita através da metáfora de um jogo de olhares. Não somos nós somente que olhamos a obra, ela também nos espreita. O olhar da própria obra é essencial à nossa constituição enquanto sujeito. Assim como nosso eu individual necessitou do olhar dos outros para, desde o nascimento até hoje, constituir-se como subjetividade, o eu transcendental desencadeado pela emoção estética através da imagem também necessita do outro, que é o olhar da obra de arte.

Em ambos casos esse olhar do outro mostra-se como parcialmente opaco à nossa vontade: não posso dominar a sua direção, o seu interesse, o seu desejo. Alguma semelhança ou interesse nos atrai a este olhar do outro, mas simultaneamente revela o quão diferente é de nós mesmos, diferença que se revela através de um sentimento de estranheza. Este estranhamento surge por meio de um duplo movimento: primeiro, da percepção através do outro de nosso limite; segundo, da percepção do outro enquanto alteridade radical. Nesse sentimento de estranheza origina-se que, além de ser surpreendido pelo olhar do outro, ocorra a descoberta de que se é aquele que também olha. Emerge uma nova categoria, sou mais que um simples objeto, mesmo que não possa exprimi-lo em palavras, percebo-me dotado de um desejo, de uma intencionalidade: constituo algo que de algum modo estranhamente difere de quem me olha.

Mas, se a percepção deste jogo de olhares significa espaço, falta, distância entre quem olha e quem é olhado, em um mítico - por imensurável e ínfimo - momento posterior percebemos que, desde o início de nosso ato de olhar, sem que nos apercebêssemos, um terceiro movimento vinha ocorrendo: que colocamos para dentro de nós o olhar do outro, que gradual ou rapidamente fundimo-nos com este olhar. Perdemos o limite, a separação entre o eu e o outro que o próprio olhar estabelecera em um primeiro momento. Mas não se trata da indistinta situação inicial, em que de modo caótico inexistíamos um eu e um outro. Agora que experimentamos o limite e a alteridade, identificar-se e colocar dentro de si o olhar do outro é transformar-se nele, mantendo sua diferença e subjetividade. Transformar-se é ver com os olhos do outro, vivenciar de modo concreto sua experiência, o que popularmente é denominado colocar-se dentro da pele de alguém. Por possibilitar ele esta transformação podemos designar o poeta, tal o faz o Nobel de Literatura Elias Canetti (1990), assim como a todo e qualquer artista, como o guardião das metamorfoses.

Entretanto, vamos além da metamorfose no outro e da transformação de nosso olhar no da obra de arte. Também sofremos o processo que a Psicanálise denomina identificação (Freud, Psicologia das Massas e Análise do Eu, 1978) ou identificação-projetiva (Klein, 1980), por meio do qual colocamo-nos dentro da pele de quem gostamos muito. Mas assim ainda permaneceríamos no plano das relações pessoais, no desígnio do individual e subjetivo. A imagem e a emoção estéticas conduzem a um salto. Através do outro, que se generaliza por meio da obra de arte, sendo este o talento do artista, descobrimos o universal. Por um instante, que tanto pode ser lembrado depois como breve ou longo, pois revela-se como atemporal, experimentamos uma fusão além daquela fusão com o outro enquanto sujeito. Constitui-se um processo mais abrangente de metamorfose, a que Nietzsche (1992) denominou dionisíaca: colocamo-nos além de toda a individualidade, além de todo o subjetivo; somos tomado por uma percepção do incomensurável, por um sentimento oceânico. Através do dionisíaco podemos universalizar a experiência humana, comungar com a humanidade e o mundo, sentir a natureza.

Após o arrebatamento dionisíaco, instante mítico, novamente re-flete o olhar, o eu volta a ser a fonte e sede da qual se mira o mundo. Constitui-se o quarto movimento em que podemos analisar fenomenológico-existenciamente a emoção estética. Recuperamos a individualidade, retornamos ao limite, ao contorno e à distância do olhar. Utilizando os termos de Nietzsche, em oposição ao dionisíaco, retornamos ao estado apolíneo. Entretanto, este estado de diferença e subjetividade, esta volta ao apolíneo foi modificada em relação ao estado inicial. Tendo sofrido, mesmo que por breve instante, uma fusão, uma metamorfose de nosso olhar no da própria obra, agora nos vemos como ela nos vê. Ao nos vermos através do olhar do outro, internalizando e experimentando como nosso esse olhar, modificamo-nos para sempre, incorporamos algo verdadeiramente novo, compreendemo-nos melhor.

Mas também incorporamos à nossa subjetividade a do outro como aquele que possui outros desejos, motivações, difere de nós, mas é tão real e pleno d e existência quanto nós mesmos. Agora o outro não é apenas um espectro, ou apenas um olhar opaco ao nosso. A lembrança de ter vivenciado o que é estar na pele do outro foi incorporada, assim como também assimilada à experiência universalizadora do dionisíaco. Apenas por meio deste movimento existencial há possibilidade de melhor auto-compreensão, da mesma forma que somente a incorporação do olhar do outro ao nosso permite que se estabeleça a crítica.

Deste modo, semelhante à análise fenomenológico-existencial da poesia, podemos refletir sobre o ritmo da construção da imagem artística, ou da metamorfose de uma imagem em outra, enquanto desencadeadora de um processo análogo em nosso eu, que a partir de Kant pode ser compreendido como uma sucessão ininterrupta de um fluir de associações. Por meio da vivência trazida pela obra, metaforicamente descrita pelo jogo de olhares, também se desencadeia neste eu, além de seu fluir usual, um infinito labirinto de outras associações, conscientes ou não. Descubro estados, lembranças, fatos, emoções que desconhecia.

Entretanto, a emoção estética produz algo além da vivência através dos olhos de outro, ou das associações de idéias e afetos. Um dos dons da Arte é o de, através da imagem presentificada, produzir uma unidade na pluralidade, um todo. Nesta capacidade de síntese, de capturar através de algum meio o uno, reside o talento do artista, talento que permite ser a emoção estética muito mais que a experiência do outro e de seu conhecimento, mas um jogo de identidade e diferença. Por meio da emoção estética, integro a mim outros eus, o mundo, a existência e seu sentimento de unidade. A emoção estética constrói uma vivência cujo contato amplia e transmuta o eu para novo patamar. Existencialmente podemos, então, superar as várias dicotomias que cindem a natureza humana: sujeito/objeto, corpo/mente, inteligível/sensível, natureza/cultura, entre outras cisões criadas pelo pensamento metafísico ocidental. Associados à experiência do dionisíaco, a percepção e o sentimento de unidade na pluralidade permitem ao eu - individual, pessoal e ligeiramente incomunicável - então atingir a dimensão de um eu maior, que kantianamente podemos definir como transcendental, universal.

Algumas Propostas para o Lugar da Estética na Educação
Esta proposta de análise fenomenológico-existencial da obra de arte, que prioriza a imagem enquanto construtora da intencionalidade da emoção estética, pode fornecer algumas idéias para os muitos desafios com que se defronta a Educação.

Apesar de que, em um primeiro instante a obra possa nos parecer fragmentada ou abstrata, a experiência estética, desde que ocorra de modo pleno, em si mesma termina por produzir a percepção de uma unidade, de uma totalidade orgânica - percepção que não necessariamente necessita ser consciente (provavelmente não o é na maioria das vezes). Mas o sentimento de integração ao eu de um novo saber, que produz uma maior integração do próprio eu, seria uma das causas psicológicas da satisfação que ocorre em toda emoção estética. Em um novo patamar, compreendemos mais amplamente e com menos esforço a nós e ao mundo. Mesmo quando o objeto artístico inicialmente parece-nos inumano, cruel, grotesco ou absurdo, a dinâmica de sua própria intencionalidade resgata algo perdido ou desconhecido da experência humana.

Deste modo, a própria natureza orgânica da emoção estética ajudaria em si mesma a contrabalançar a fragmentação trazida pelo vertiginoso crescimento da informação e da técnica. Da mesma forma que o conhecimento contemporâneo cresce de forma exponencial, a Arte também o faz. Contudo, a despeito do desenvolvimento dos meios, de novas modalidades de expressão e até de novos tipos de objetos artísticos, a natureza da Arte é em sua própria essência contrária ao processo de fragmentação do saber do qual padece o mundo contemporâneo.

Seja como parte dos conteúdos da Educação Artística, da Metodologia do Ensino, ou do aprendizado de História da Arte, os conteúdos da Estética, como disciplina filosófica, fundamentam e fecundam a todos esses. A natureza dos conteúdos da Estética em si mesma opõe-se à redução do educador a mero transmissor de informação, a um mero técnico a adestrar mão-de-obra para o mercado de trabalho.

A obra de arte é sempre humana, ou um retorno à humanidade, e torna o Ser Humano indispensável. A máquina pode veicular quantidades quase infinitas de informação. Contudo, propiciar a emoção estética não é simplesmente colocar alguém diante de um objeto artístico, mas enriquecer aptidões, desenvolver o prazer e o amor por algum tipo de conhecimento (o que em si mesmo também é uma forma de arte), propiciar condições para novos experimentos e experiências, transmitir o interesse pela essência viva do legado de gerações passadas. Em tudo isto, nada pode substituir a presença efetiva de outro Ser Humano. Somente deste modo pode-se assegurar que o ensino não se constitui em simples transferência de conhecimento, mas sim em "criar as possibilidades para sua produção ou sua construção" (Freire, 1997).

A intencionalidade e a essência da imagem e emoção estéticas por si mesmas constróem uma nova proposta humanista. Através da Arte, o sublime, o espantoso, o grotesco, o feio, inserem-se na dimensão do humano ao mesmo tempo que na do universal. Mesmo a mais abstrata das manifestações artísticas constrói algum dos infinitos prismas da existência humana. Nesta análise da essência da Estética não se pode falar de desumanização da Arte, mas do resgate das mais diversas e até mesmo mais assustadoras características do Ser Humano. Se há manifestações artísticas que evocam agressividade ou desespero, constróem um modo de conhecimento, de integração à natureza humana, mas não uma aceitação passiva. Como veremos melhor, trata-se de um processo de aceitação crítica da natureza humana, primeiro passo para combater ou minorar seus efeitos deletérios.

Simultaneamente, uma vez que é da essência da imagem e emoção estéticas o resgate do Ser Humano, fundamentar os conteúdos da Educação a partir da Estética constrói em si mesma a proposta de criação de um novo Humanismo, não somente no antigo sentido idealista, mas de um retorno a valores que fundamentem uma práxis, o que, tal como foi assinalado, constitui uma demanda que constatamos nos mais diversos níveis de experiência docente e discente. Sendo a criatividade comum a toda natureza humana, estimulá-la constitui parte integral de qualquer proposta humanista. A redução do ensino a mera transmissão de técnicas, a atrofia do educador como mero transmissor de informação, com o único propósito de adestrar mão-de-obra para o mercado de trabalho, possui como conseqüência necessária o definhamento das aptidões criativas inatas do aluno. Aristóteles já conceituara como monstruoso, não o que julgamos feio ou grotesco, mas a forma que é impedida de atingir sua plenitude. Uma vez que a criatividade participa da natureza de todo Ser Humano, atrofiá-la é produzir monstruosidades.

O acesso privilegiado da Arte ao inconsciente por meio da imagem, a torna essencial a qualquer processo criativo em Educação. Tanto os conteúdos da Educação Artística, quanto os da História da Arte e da Metodologia de Ensino, proporcionam o enriquecimento de predisposições e a possibilidade da criação de novas aptidões.

A natureza da imagem e da emoção estética pode em si mesma responder a outro dos desafios atuais da Educação: auxiliar a trans e a multidisciplinaridade. Ao desencadear no eu um labirinto infinito de associações, conscientes ou inconscientes, ao mesmo tempo que externamente o próprio objeto, em uma tendência ainda mais acentuada nos dias atuais, também sempre remete a outros objetos, a obra de arte possui intrínseca à sua natureza ser multivetorial. A essência da emoção estética opõe-se a qualquer forma unidirecional de pensar e sentir. Não se trata da produção de uma gama de vetores desprovidos de elo comum: um amontoado desprovido de elo comum seria propiciar o beletrismo. Ao contrário, a natureza orgânica da imagem fornece ao diverso uma percepção da unidade na qual se encontra. Trata-se da noção essencial à Filosofia, desde seus primórdios de determinar o múltiplo em um todo. A determinação do diverso na unidade, a que se propõe a tarefa do pensar filosófico, constitui um dos principais auxílios da Filosofia à Educação. Contudo, há de se atentar à acusação de totalitarismo que é feita contra a própria Filosofia. Há de se escapar da excessiva sistematização de um Kant ou Hegel. Constitui parte da essência da Estética servir de método contra o excesso e a paranóia do sistema filosófico. A dinâmica da imagem e emoção estéticas - desencadeando um labirinto infinito de associações intra e intersubjetivas - é contrária ao excesso de sistematização do pensamento. Inexiste rede grande o bastante para abarcar o infinito.

Do mesmo modo, a imagem e emoção estéticas são potencialmente catalisadoras para a formação do generalista, para produzir uma visão global, indispensável ao profissional trans ou multidisciplinar hoje vital nas mais diversas áreas. A Educação Artística, a Metodologia do Ensino, a História da Arte devem apresentar em seus conteúdos o propósito de proporcionar a maior variedade possível de experiências, técnicas e emoções, pois é da própria natureza destas, ao criar seu labirinto de referências e associações, dentro e fora do sujeito, remeter a outras experiências, técnicas e emoções.

Apenas por meio desta variedade e de sua assimilação de forma coerente, podem ser percebidas as falhas e os limites de um paradigma. Contrastar um paradigma com outros, constitui o primeiro passo para superá-lo. Para que se ultrapasse a crise que segundo Kuhn termina por minar todo o conhecimento desenvolvido por um paradigma, há de se associar este primeiro passo ao seguinte, que constitui um pensamento horizontal, englobante, utilizando-se dos mais variados saberes. Só deste modo pode ser fecundado um novo paradigma.

Conclui-se que também pertence à dinâmica da Arte, além de incentivar a criatividade, permitir a trangressão dos modelos instituídos. Pertence à própria essência da emoção estética, construída pela imagem através do movimento de seu olhar - revelando identidades, limites e diferenças - ser potencialmente catalisadora deste processo de trangressão - motivo pelo qual, desde Platão na República, existem a intolerância e a tentativa de qualquer regime totalitário censurar, cercear e até banir a manifestação artística. Desta forma, em uma dimensão ainda mais abrangente, por meio da criação de um novo paradigma, pode-se ultrapassar a idéia de que o ensino seja mera transferência de informação, e considerá-lo, sim, a criação de possibilidades para sua produção e construção.

Possíveis Contribuições da Estética Para uma Ética da Educação
Entretanto, ainda permanece uma das questões mais essenciais: de que modo pode a Estética fundamentar a Ética e a Educação? Este movimento de fundamentação pode ser caracterizado em várias etapas, complementares aos movimentos analisados de dinâmica da imagem e da emoção estéticas.

Em um primeiro movimento de análise da emoção estética, no instante em que o olhar da imagem - o olhar do outro - produz o espanto, percebemos que esse olhar também significa espaço, falta, distância entre quem olha e quem é olhado. A percepção deste limite quebra o que Freud (Introdução ao Narcisismo, 1978) nomeou narcisismo primário e que, por referência ao mito de Narciso, é o amor exclusivo à imagem de si mesmo. A ferida narcísica que constitui a percepção do outro, dos limite do eu, constrói o primeiro passo para a humildade, para o respeito ao próximo, para a inserção no social.

Em um segundo instante da análise fenomenológico-existencial, percebemos que, ao vivenciar o outro enquanto alteridade, assim como ao proporcionar a maior diversidade possível de referências e associações, dentro e fora do sujeito, produzindo um efeito mulitiplicador sobre sua própria essência, a dinâmica de emoção estética traz em seu bojo uma proposta política. A diferença que se revela por meio do olhar do outro, o infinito labirinto de associações internas e externas, conduzem à percepção de que a diversidade humana é infinita, que sua realidade sócio-política é múltipla, variada, mutável ao longo do tempo e do espaço.

Trata-se de uma direção oposta à de se ter primeiro uma idéia ou concepção de um sistema e aplicá-la ao múltiplo. Ao reduzir tudo a um sistema, isto é, partir-se do todo para o diverso, termina-se por violentar a natureza dos objetos, do mundo e do Ser Humano; constrói-se a base de um pensamento autoritário. A proposta filosófica, fundamentada por meio da emoção estética, constrói a unidade a partir do múltiplo, dando sempre espaço a que se perceba que o todo não apresenta contornos precisos, traços absolutos, que não deve ser excludente, mas tolerar a diferença e a particularidade. Desenvolver esta proposta constitui ampliar a tolerância sem contudo dissolvê-la em um pensamento acrítico. Perceber a multiplicidade da natureza humana, bem como a transformação da realidade sócio-política no tempo e no espaço, difere de justificar a desigualdade social como inevitável, ou que o pluralismo seja mera consequência das leis de mercado.

No terceiro instante de análise do movimento do olhar construído pela emoção estética, em que coloco dentro o olhar do outro, transformo-me no outro. Por um mítico momento, perco o limite, a separação entre o eu e o outro que o próprio olhar criara. Através da metamorfose no outro, podemos existencialmente vivenciá-lo. A Arte tem o dom de tornar tal experiência de singular em universal - mas neste mínimo instante, tal usualmente se diz : "coloquei-me na pele do outro". Este colocar-se dentro da pele de alguém, universalizado pela emoção estética de um "alguém" individual para um "alguém" universal, fundamenta o imperativo categórico kantiano (Kant, 1974, 1984).

Mas não se trata mais de uma fundamentação teórica, e portanto questionável, do imperativo categórico kantiano, e sim de um processo existencial. Tendo estado dentro da pele do outro, reconheço-o como um fim em si mesmo e não simplesmente como um meio para alcançar meus objetivos. Tendo ultrapassado o singular em direção ao universal, posso generalizar uma máxima pessoal em uma lei universal.

Por meio do quarto movimento da análise fenomenológico-existencial da dinâmica da imagem e emoção estéticas, completa-se a fundamentação ética. A identificação e a incorporação do olhar do outro ao nosso, que agora permitem que nos vejamos de modo novo, estabelecem a base para a crítica, para que esta crítica dirija seu olhar tanto a nós mesmos, quanto ao mundo. Sem incorporar o olhar do outro, toda crítica em realidade constrói-se enquanto pseudo-crítica: apenas reduzimos tudo tomando a nós mesmos, nossa classe social e ideologia como medida para todos e tudo. Contudo, sem o sentido de unidade, sem a possibilidade de integração em um todo coerente mas não totalitário, a que previamente conduz a emoção estética, a crítica permaneceria primordialmente auto-referencial e ideológica. Sem o fenômeno existencial de, por meio da metamorfose da arte, ter experimentado na pele do outro sua realidade, a incorporação do olhar do outro não apenas teria sido impossível, como poderia permanecer no domínio do puramente teórico e não do concretamente vivido. O movimento de percepção da alteridade, que se inicia no espanto da percepção do olhar da obra enquanto olhar do outro, só se completa quando, ao metamorfosear-me nele, vivo sua experiência e, depois, ao assimilarmos dentro de nós seu modo de olhar.

Os vários movimentos por meio dos quais a imagem e a emoção estéticas instauram uma dimensão ética e possibilitam um pensamento crítico, respondem parcialmente ao desafio de uma contribuição para a fundamentação ético-política da Educação. Contudo, a proposta da Estética para este desafio necessita de maior complementação. Tal como foi mencionado, no século de Auschwitz e de Hiroxima, assim como dos graves exemplos nacionais de um autoritarismo recente e da crescente violência atual, obrigam-nos a uma reflexão ética ainda mais radical.

Indubitavelmente as enormes desigualdades sócio-econômicas, bem como os exemplos fornecidos pelo passado totalitário recente e pelas classes dirigentes atuais, respondem por grande parte da violência do Brasil de hoje. A sistemática destruição do papel do Estado enquanto fornecedor de ensino necessariamente produz a destruição do principal espaço de formação de Cidadania, que é a escola - principalmente a de primeiro grau. Acentua-se como co-responsável o discutível processo de globalização e homogeneização da cultura, apresentado como fatalidade histórica do neoliberalismo, em grande parte constituindo a violentação da identidade e da diversidade do Ser Humano e de suas sociedades: violência inconsciente e irracionalmente respondida por meio de mais violência.

Entretanto, ainda resta algum substrato da natureza humana que a predispõe à destrutividade. Campos de concentração e artefatos nucleares surgiram no seio das nações supostamente mais desenvolvidas. A todo ser vivo é necessário algum grau de agressividade para a sobrevivência. Seja fruto da natureza ou da cultura, possivelmente ambas multiplicando seus efeitos, o que chama à atenção é que, no caso do Ser Humano, a agressividade ameaça a própria sobrevivência, individual e da espécie. Somos obrigados a aceitar que em nossa espécie, diferentemente da maioria das outras espécies, algo se associa à agressividade. A descoberta da importância e intensidade do prazer associado à agressividade, transformando-a em sadismo, constitui uma das grandes contribuições de Freud (Mal-Estar na Civilização, 1978) para uma melhor compreensão do Ser Humano.

A denúncia trazida por muitas obras, tal os Os Retirantes de Cândido Portinari, diante da qual sentimo-nos não só arrebatados, mas também tomados por um sentimento de indignação e revolta, exemplifica a importância política da Arte. Mas, além de servir de meio para a criação de uma consciência social, a Arte possui uma outra função política: constituir-se também em um meio de conscientização para que seja reconhecida e aceita a participação do sadismo na destrutividade humana - conscientização que é o primeiro passo para que se possa minorar esta destrutividade, levando à efetiva modificação do real.

O prazer estético, produzindo o sentido de unidade que integra o diverso em um todo coerente, bem como a dinâmica de limite, alteridade, metamorfose e crítica, possibilitam a conscientização e a incorporação ao eu de um sadismo neutralizado de efeitos concretos. A violência, desprovida de outro sentido que a satisfação imediata, divulgada pelos meios de comunicação contemporâneos, acentua morbidamente o sadismo. Tal tipo de violência é condutora da busca, crescente em intensidade e freqüência, por tal tipo de satisfação. Cumpre-se o dito psicanalítico de que se repete ativamente tudo o que se sofre passivamente. Ao contrário, sublimada por meio da Arte, a destrutividade pode transformar-se em seu oposto: em criatividade.

Associada à experiência vivida de que o outro constitui um fim em si mesmo e não apenas um meio para atingir meus objetivos, ao desenvolvimento de um pensamento crítico, à conscientização social, a percepção da importância e do perigo do sadismo sensibiliza e é capaz de desenvolver no Ser Humano, talvez, o único baluarte possível ao uso coercitivo e inescrupuloso do conhecimento. Esta é a proposta ao desafio que perpassa o ensino desde a Antiguidade, o de que a virtude, o único bem realmente importante, só pode ser transmida através de um processo dialógico. No entanto, não se trata de um diálogo apenas verbal, mas de um diálogo existencial, só possível por meio da Arte.

Conclusão
A tarefa da Filosofia não é a de fornecer soluções definitivas. Tal era o objetivo da construção dos antigos sistemas filosóficos. Foi mencionado que tais sistemas hoje são encarados como modelos demasiado abrangentes, tendentes a um pensamento totalitário e até delirante (Horkheimer e Adorno, 1989).

Apesar de ter sido Kant o criador de um dos maiores sistemas filosóficos, portanto passível da acusação acima, as quatro perguntas às quais resumiu a tarefa da Filosofia permanecem a melhor síntese desta : "O que posso conhecer ?" - questão da Epistemologia; "O que devo fazer ?" - questão da Ética; "O que me é permitido esperar ?" - questão da Metafísica em sua acepção mais usual; três questões que remetem a uma quarta: " O que é o homem ?". A tarefa da Filosofia é manter permanentemente em aberto estas questões que possivelmente jamais admitirão uma resposta definitiva. Manter-se a salvo de uma resposta que se proponha como definitiva é manter-se a salvo de um pensamento totalitário, dogmático e mítico.

A pergunta-chave para a constiuição de uma Antropologia Filosófica - "O que é o homem?" -, cuja resposta é infinita e desconhecida, tratando-se da questão da qual a Esfinge, ao jogar-se no abismo tornou Édipo seu herdeiro, permite apenas o esboço de uma resposta poética. Como assinalou Morin (s.d.) o Ser Humano é o ente que sonha mais que todos outros, e estende à vigília seu invento e que, portanto, ainda não terminou a tarefa da criação.

A proposta que fizemos de uma Estética a partir do método psicanalítico e do método fenomenológico-existencial necessariamente permanece incompleta e em aberto. O aprofundamento teórico, bem como a validação prática desta proposta no campo da Educação, necessitam de pesquisa, teórica e de campo. Mesmo aprofundada por tais pesquisas, deve permanecer sempre enquanto uma proposta incompleta para uma Estética - até quando, de acordo com a descrição de Kuhn, o próprio modelo conduza a seu limite. A mesma incompletude que abarca este modelo também assinala para o limite de outros, e até mesmo para o limite do lugar da Estética na Educação. Acima de tudo deve-se recear o perigo de extrapolar a estética em esteticismo, ou seja em culto religioso disfarçado da manifestação estética. Tomando o papel de uma pseudo-religião o esteticismo necessariamente torna-se acrítico e dogmático. Face ao lastimável estado em que se encontra a Educação em nosso país, torna-se imperioso minorar a curto e médio prazo as situações criadas pelos desafios descritos. Urgentemente necessitam ser restabelecidos o direito básico do acesso à Educação para todos, o papel do estado enquanto provedor desta Educação, bem como o papel da escola como fonte de Cidadania. Mas, principalmente, diante do quadro lamentável em que se encontra a Educação em todos níveis, mais necessário torna-se o lugar da Estética e mais imperiosa a sua participação para fundamentar uma Ética construtora de Cidadania.

Uma vez superado um mínimo das carências básicas pelas quais passa o ensino em nosso país, o que infelizmente parece cada vez mais distante e utópico, deve-se aceitar que a incompletude permanecerá sempre quanto a uma resposta perfeita aos desafios à Educação mencionados, mesmo porque tais desafios seguramente serão sucedidos por outros, provavelmente mais graves e prementes.

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* Anchyses Jobim Lopes, Médico (UFRJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Doutor em Filosofia (UFRJ), Psicanalista e Membro Efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ
Parcialmente publicada em: Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, nº 31, Julho 1998.